Nestes tempos onde o obscurantismo ganha cada vez mais força, seja em suas teorias terraplanistas, seja na crítica ao evolucionismo e defesa do criacionismo, ou ainda: na contestação dos direitos das minorias sociais, o trabalho dos professores vem sendo sistematicamente atacado por setores conservadores que parecem querer desacreditar o papel libertador e promotor do pensamento crítico da educação. São movimentos de caráter retrógrado que, em última análise, advogam não ser papel da escola se contrapor ao senso comum e que "confundem a educação escolar com aquela fornecida pelos pais e, com isso, o espaço público e privado, o princípio da laicidade do Estado, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas"
(Gabatz, 2018).
Um dos movimentos que mais se destaca neste sentido é conhecido como Escola Sem Partido, criado em 2004 pelo advogado paulista Miguel Nagib. Através de ações articuladas por políticos de viés conservador - quando não reacionários - o movimento tem proposto em diversas casas legislativas país afora, a partir de suas interpretações deturpadas da Constituição Federal, projetos de lei com a intenção de intimidar professores, em um claro atentado à liberdade de cátedra, conquista fundamental das sociedades democráticas. O projeto se trata de uma tentativa de amordaçar os profissionais da educação, ao sugerir que estes possuem "partido", enterrando a possibilidade de construção do conhecimento, que se dá através do diálogo entre alunos e professores. Sob pretexto de combater uma suposta "doutrinação ideológica" por parte dos professores, o movimento revela sua própria ideologia, conservadora e à serviço dos grupos dominantes.
Assim, o Escola sem Partido pretende colocar os professores em constante vigilância por meio de expedientes grotescos, tais como a proposta de se afixar um cartaz em cada sala de aula do país com "mandamentos" a serem cumpridos pelos educadores, estimulando a delação (como os jovens nazistas incentivados a denunciar judeus e comunistas ao Partido Nazista) por parte dos alunos que considerem estar estas regras sendo desrespeitadas durante as aulas. Desta forma, determinados temas estariam vedados e os professores se tornariam os únicos trabalhadores a não possuírem liberdade de expressão. O absurdo se torna evidente: a sala de aula, lugar privilegiado de discussão, torna-se apenas um local no qual um instrutor despeja conteúdos sobre os alunos para que estes os memorizem e os reproduzam nas avaliações, sem necessidade de pensar. É a típica visão de que a educação, sobretudo a dos pobres, deve servir exclusivamente para a formação de mão de obra, desqualificando a formação cidadã dos indivíduos como coisa de "comunista".
Outra conquista essencial das sociedades democráticas de direito é a laicidade do ensino. Portanto, religião e educação não se misturam. Na escola, se houver, o ensino religioso deve abarcar todas as manifestações espirituais, sem favorecer esta ou aquela crença. Afinal, a escola, embora a subjetividade também esteja presente, é lugar de conhecimento racional e científico, deixando a fé para as igrejas e famílias.
Um movimento conservador e reacionário como o Escola sem Partido hipocritamente defende que a educação deve ser neutra, mas por outro lado, afirma que as crenças religiosas das famílias dos alunos (evidentemente a fé cristã) não podem ser examinadas e problematizadas pelos educadores. Nessa defesa, identificam-se ao menos dois graves erros: em primeiro lugar a escola não ataca nenhuma fé, ela discute ideias e analisa fatos, sejam eles históricos, sociais, biológicos etc., algo que com frequência colide com doutrinas religiosas. Em segundo lugar, se a escola for um espaço dedicado a simplesmente ratificar o senso comum, não há necessidade de sua existência, já que as crianças e jovens teriam todo aprendizado que precisam na família. O que fica subentendido na proposta, além de sua demanda por "neutralidade", é que o professor não pode ter "partido", mas que seria conveniente ter religião.
É sabido, por qualquer pessoa com o mínimo de instrução, que a neutralidade não existe. Todos temos nossas próprias histórias, construídas a partir de nossas experiências e conhecimentos acumulados ao longo da vida, que nos tornam aquilo que somos, seja em termos políticos, morais, religiosos, ideológicos etc. Um ideal que é possível perseguir seria o da imparcialidade. Por exemplo: um professor, mesmo que politicamente à esquerda ou à direita, pode explicar para seus alunos as principais características da esquerda e da direita sem oferecer nenhum tipo de juízo de valor. No entanto, para os defensores do Escola sem Partido isto seria impossível, ao considerarem que a maior parte dos professores atua como militantes esquerdistas. Doutrinadores que se aproveitam da "ingenuidade" de seus alunos para conquistá-los para suas causas.
Nada mais errado. Tratar os jovens alunos como tábulas rasas, que não contestam ou não avaliam criticamente aquilo que seus professores ensinam em aula, é de uma insensata desonestidade. Cada vez mais os alunos, ao acessarem todo tipo de informação (que saliente-se, não é necessariamente conhecimento), se colocam em posição de contrapor aquilo que aprendem na escola ao que conhecem na internet, nos livros, no cinema, na televisão. A ideia do Escola Sem Partido soa ridícula: os alunos seriam criaturas passivas, vitimadas por terríveis vilões travestidos de educadores.
Este é o pensamento de Winn Adami, a kai de Bajor. Kai é um título semelhante ao de Papa, ou seja, Winn Adami é a líder religiosa do espiritualizado povo bajoriano. A estrutura hierárquica de religião de Bajor é semelhante à estrutura da Igreja católica, onde os vedeks ocupam o posto do que seriam os cardeais. Antes de se tornar kai, Winn era uma vedek fundamentalista, ardilosa e obcecada pelo poder.
Na primeira temporada de Deep Space Nine, em seu 20º e último episódio "In the Hands of Prophets" (Nas Mãos dos Profetas), a vedek Winn chega à estação com o objetivo de interferir nos trabalhos de sua escola, conduzida por Keiko O'Brien. Evidentemente, Keiko em sua atuação como professora, procura reger suas aulas de maneira laica, priorizando o conhecimento científico em vez das crenças religiosas, não somente de Bajor, mas de quaisquer outras civilizações. Este fato incomoda sobremaneira a vedek, que, além de invadir, de forma desrespeitosa, uma das aulas de Keiko, passa a mobilizar os pais dos alunos contra a educação laica, que considera uma profanação da doutrina religiosa bajoriana. Para a vedek, ao ensinar que o wormhole se trata de uma estrutura artificial, criada por alienígenas - contatados pelo comandante Sisko, na ocasião de sua descoberta -, Keiko estaria incorrendo em blasfêmia, desrespeitando a crença de que o "buraco de minhoca" é o Templo Celestial, morada dos Profetas, entidades objeto de veneração pelos bajorianos.
Keiko, exercitando sua autonomia docente, bate de frente com Winn Adami, não aceitando a interferência da líder religiosa no currículo escolar. Afinal, como discutimos acima, não é papel do professor, crítico por natureza, reproduzir explicações da realidade que não possuam embasamentos empíricos ou teóricos de pesquisa. Caso muito diferente das religiões, que estruturam seu conhecimento, prioritariamente, sobre outra importante dimensão humana que é a fé.
Portanto, ao interferir na liberdade de ensinar da professora Keiko, a vedek Winn aproxima-se dos defensores do Escola sem Partido, que julgam saber mais que os professores, que dedicaram suas vidas ao estudo das disciplinas que ministram. Da mesma forma, podemos perceber a aproximação das duas visões a partir de suas características autoritárias, que à revelia dos educadores, definem aquilo que é ou não é correto ensinar. Por um lado, um movimento que afirma que a escola possui partido, por outro, a defesa de que a escola deve ter religião.
Nem todo religioso ou toda religião são obscurantistas. Assim como nem todos os conservadores são reacionários. Contudo, com frequência, os aspectos conservadores e religiosos situam-se na base de movimentos que (embora neguem) possuem objetivos políticos e orientações ideológicas bem definidas, tais como o Escola sem Partido e o fundamentalismo da vedek Winn. Em síntese, ambos buscam anular o pensamento crítico, manter sob controle parcelas significativas da sociedade e inviabilizar qualquer tipo de transformação do mundo.
In the Hands of Prophets (Episódio 20– Temporada 1)
Roteiro: Robert Hewitt Wolfe
Direção: David Livingston
Exibido pela primeira vez em 20/06/1993