sábado, 17 de julho de 2021

O machismo de Q

 


Ao longo da história, em inúmeras civilizações, as mulheres estiveram submetidas aos homens. Na Grécia antiga eram pouco mais que animais, com a função exclusiva de parir os novos gregos. Na Europa medieval eram vistas como seres demoníacos, devido à interpretação literal dos escritos bíblicos que atribuíam à Eva a desgraça da humanidade. Durante a Revolução Industrial, equivaliam à metade de um homem como força de trabalho, recebendo assim metade do salário, em geral trabalhando muito mais.

Da mesma forma, as mulheres sempre tiveram o acesso a política vedado por uma sociedade patriarcal, feita de homens para homens. No Brasil, por exemplo, as mulheres passaram a ter o direito de voto somente em 1932, na esteira da modernização da sociedade brasileira iniciada com a Revolução de 1930. Ou seja, faz menos de um século que as mulheres passaram a exercer o direito fundamental do voto no nosso país. Em termos de tempo histórico é muito pouco e, infelizmente, em 2021 ainda encontramos estas visões bastante vivas entre nós, até mesmo em uma nova ascensão podemos dizer. São as justificativas ideológicas para o machismo. Ainda hoje mulheres recebem salários menores que os homens e são objetificadas pela publicidade, dentre tantos outros exemplos que podem ser mobilizados.

Devido a isto, as mulheres sempre se encontraram em posição frágil (ironicamente, não é o sexo feminino, de forma machista, chamado de “sexo frágil”?), em constante ameaça sobre seus (já poucos) direitos. Como afirmou a filósofa francesa Simone de Beauvoir: “Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Nada mais verdadeiro.

A moralidade vigente, sempre impôs uma pesada carga às mulheres, que nunca puderam viver livremente sua sexualidade, ao mesmo tempo em que as barbaridades perpetradas pelos homens, como assédios ou estupros, ainda nos dias de hoje são relativizadas. Não é raro ouvir que uma vítima de estupro foi a responsável pelo crime, por estar vestida com roupas que, na visão machista, seriam “inadequadas”.        

Cabe ressaltar que a laboriosa conquista de direitos por parte das mulheres nas últimas décadas se deve ao feminismo. E existe muita confusão em relação aos termos feminismo e feminista, que são tidos por pessoas ignorantes ou mal intencionadas como sinônimos de supremacia das mulheres sobre os homens. Não se trata disso: o feminismo busca a igualdade de direitos entre homens e mulheres, num mundo que sempre os tratou como desiguais. E mais: busca a superação de um modelo de sociedade no qual as mulheres se aproximam a posses dos homens, que a partir disto poderiam fazer o que bem entendessem com a “sua” mulher. A questão da posse é fundamental nesse caso, revelando a conexão com a sociedade de classes, com o capitalismo, com o mundo dividido entre os que possuem e os que são possuídos.

Mas após essa breve introdução, chegamos ao ponto central da coluna desta semana:  a atuação machista do nosso velho conhecido Q em relação a nossa também velha conhecida Vash no episódio “Q-less” (O Lance de Q), de Star Trek: Deep Space Nine.

Q, como vocês devem saber, é aquele ser onipresente, onisciente e onipotente que adora importunar o capitão Jean-Luc Picard, ao qual de maneira debochada chama de “mon capitaine”. Devido ao grande sucesso do personagem, interpretado por John De Lancie, Q estará de volta na segunda temporada de Star Trek: Picard, em 2022. Vash, uma arqueóloga muito pouco ética, também é conhecida dos trekkers como interesse amoroso do nosso querido Picard, que também é arqueólogo nas horas vagas.

Mas a questão é que o casal Q e Vash é formado ao término do episódio “Q-pid” da 4ª temporada de A Nova Geração. Entretanto, tempos depois, Vash termina relacionamento (ninguém pode aguentar o irritante Q por muito tempo), fato que não é bem aceito por Q, em atitude tipicamente machista de achar-se no direito de forçar a companheira a permanecer em uma relação na qual ela já não se sente feliz.

Vash, que após uma temporada de 2 anos no Quadrante Gama, coletando artefatos arqueológicos, chega pelo wormhole à Deep Space Nine, seguida por Q, inconformado com o fim do relacionamento. Sendo assim, Q tenta de todas as formas convencê-la a reatar, propondo viagens a lugares nunca visitados da galáxia e até mesmo a outras galáxias, recebendo como resposta de Vash sucessivas negativas, às quais teima em ignorar.

Desta forma, Q, que nas palavras do capitão Picard é “desonesto, imoral, inconstante e irresponsável”, passa a demonstrar comportamento egoísta e narcisista, típico daqueles homens que, por se considerarem “donos” das mulheres, simplesmente não aceitam o não e acabam por infligir toda sorte de violência ao objeto de suas paixões. Quem estiver no caminho também sofre as consequências. Ao homem cegado pela obsessão que nasce do machismo, não importa quem possa ser atingido, desde que seu objetivo seja logrado.

O episódio representa com precisão este tipo de situação. Quando a estação sofre — e todos que nela se encontram — uma grave ameaça de destruição, o onipotente Q, que facilmente poderia salvar a todos, simplesmente recusa-se a agir, já que não consegue demover Vash de sua decisão de não seguir com o relacionamento. Condiciona a vida de todos na estação a reatar seu relacionamento com Vash. Feminicida e homicida.

No fim, é claro, tudo dá certo e entre mortos e feridos todos se salvam. Sobretudo Vash, que deixa de ser importunada por Q. Infelizmente, no Brasil as coisas não são bem assim. No país, a cada 7.2 segundos uma mulher é vítima de violência física (Fonte: Relógios da Violência, do Instituto Maria da Penha). Segundo dados do Mapa da Violência de 2015, no ano de 2013, 13 mulheres morreram todos os dias vítimas de feminicídio, ou seja, assassinadas em função de seu gênero, basicamente por homens que não aceitaram o término do relacionamento.

É uma triste realidade, que exige não somente das mulheres, mas dos homens também, a luta diária contra o machismo. Como qualquer criação humana, o patriarcado e o machismo têm origens históricas, já apontadas por Engels em sua obra seminal A origem da família, da propriedade privada e do Estado, publicada em 1884. Cabe ao seres humanos, organizados em torno do bem comum, construírem a sua própria história e relegar o machismo aos museus.

 

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Eduardo Pacheco Freitas é professor, historiador e autor de dois livros sobre o universo de Jornada nas Estrelas: Star Trek: utopia e crítica social (2019) e O'Brien deve sofrer! (2021).