sábado, 20 de junho de 2020

Star Trek, igualdade e a verdadeira liberdade



Recentemente, Jonathan Frakes (intérprete de William Riker) contou em um vídeo no twitter como foi o processo de sua entrada para o elenco de A Nova Geração no final dos anos 1980. Frakes participou de diversas audições, sendo as últimas delas dentro do escritório do Grande Pássaro da Galáxia em pessoa, o criador de tudo, Gene Roddenberry.

Durante uma dessas entrevistas Gene fez questão de revelar para Frakes do que se tratava Star Trek. Ele que queria que o jovem ator - prestes a entrar para aquele universo utópico - compreendesse claramente o que ele representava: um mundo sem machismo, sem racismo, sem fome, sem ganância e onde todas as crianças sabiam ler.

Os fãs de Star Trek estão cansados de saber que o mundo visto na série é exatamente assim (ou quase sempre assim). Mas vejamos isso um pouco melhor, vejamos como liberdade e igualdade se interconectam na visão de Roddenberry.

Um mundo sem machismo é um mundo onde as mulheres não estão mais aprisionadas pelo simples fato de serem mulheres. Libertam-se das correntes do patriarcado, tornando-se assim iguais aos homens. Um mundo sem racismo é um mundo onde os negros – ou qualquer não branco – não são escravizados, massacrados e marginalizados durante séculos pelo fato de possuírem a cor da pele diferente.

Já um mundo sem fome se trata de um mundo onde todos têm acesso à alimentação digna de um ser humano, não estando mais sujeitos a única liberdade concedida aos famintos que é morrer de inanição.

Um mundo sem ganância é o mundo onde as pessoas não são tornadas escravas pelo dinheiro, onde agem de maneira antiética em busca de acumular riqueza. É o mundo onde o ser humano controla as coisas e não mais é controlado por elas.

Por fim, um mundo onde todas as crianças saibam ler é um mundo onde o conhecimento está ao alcance de todos, onde existe, de fato, a liberdade de aprender, de ensinar e de crescer.

Todas essas liberdades preconizadas por Gene Roddenberry, expressas nos quase mil episódios de Star Trek ao longo de mais de 50 anos, estão profundamente ligadas à igualdade.

Quando as mulheres e os negros não mais são oprimidos, quando ninguém passa fome, quando o “ser” é mais importante que o “ter”, quando todas as crianças são alfabetizadas, aí verificamos relações sociais igualitárias sobre as quais ergue-se uma humanidade livre.

Por isso, sem igualdade não existe a verdadeira liberdade. O ser humano só pode ser efetivamente livre quando todos têm acesso às mesmas oportunidades. Qualquer coisa fora disso é a velha retórica liberal. Nesta, encontramos a defesa intransigente (porém hipócrita) da liberdade, sem revelar que, na verdade, defende somente a liberdade de propriedade, como não fariam melhor os ferengis através das suas Regras de Aquisição.

Os liberais pregam a liberdade como um valor universal, mas, por trás das aparências, surge unicamente a liberdade das classes proprietárias disporem como bem entenderem de suas propriedades, seja lá que forma elas assumam.

Na escravidão, os proprietários eram totalmente livres para usufruírem da sua propriedade que se tratava de outro ser humano escravizado. E estes proprietários eram todos liberais, como demonstra a Revolução Americana, feita por escravistas. Como demonstra a construção do Império Britânico, sobre o tráfico de escravos e tantos outros exemplos históricos. Não vemos nada disso na Federação Unida de Planetas. A liberdade dos liberais já não mais existe.

No universo de Star Trek, no sistema livre e igualitário da Federação, já não há mais a escravidão nem as outras formas de dominação que atentam contra a liberdade e a igualdade. O ser humano é livre e inserido numa sociedade justa. Marx já alertava: “O reino da liberdade só inicia onde termina a necessidade”. Em suma, todos aqueles que necessitam de reconhecimento ou que, simplesmente, não tenham o que comer, nenhum deles será livre enquanto o velho mundo persistir.

Jonathan Frakes diz que aquela reunião com Gene Roddenberry o tocou forte no fundo do coração. Deveria tocar a nós todos também. Além disso, deveria nos inspirar para a construção da verdadeira liberdade.

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sexta-feira, 5 de junho de 2020

Star Trek e política




Desde 1966, quando foi ao ar pela primeira vez, Star Trek é, essencialmente, uma série política. E não precisa ser nenhum gênio, possuir uma capacidade de interpretação semiótica espetacular ou um doutoramento em ciências cinematográficas e da TV para chegar a esta conclusão. Na verdade basta assistir, assim como quem não quer nada, alguns dos seus episódios para que esse entendimento fique claro.

Um primeiro exemplo. Com “Balance of Terror”, da série original, aprendemos que o preconceito e a intolerância não têm vez na Enterprise. Devemos lembrar que os Estados Unidos naquela época ainda eram um Estado racial, onde negros não tinham os mesmos direitos que os brancos. Em “Let That Be Your Last Battlefield" a crítica ao racismo é mais explícita, tratado de aliens com a cor da pele diferente que se odeiam.

De qualquer forma, o racismo AINDA continua vigorando e ceifando vidas por lá (e por aqui) vide o sufocamento brutal de George Floyd e o assassinato do menino Miguel Otávio.

A eugenia é tratada tanto em “Patterns of Force”, que não é apenas mais uma história de nazistas no espaço. O mesmo tema encontramos no episódio amado “Space Seed”, onde um arqui-vilão racista — favorável à eugenia — tenta tomar o controle da Enterprise.

Em “Mirror, Mirror”, encontramos a barbárie imperialista e capitalista como a completa oposição da Federação. Em “The Cloud Minders” aprendemos que a sociedade de classes é irracional. Spock sentencia: esta não é uma liderança sábia. É a luta de classes manifesta de maneira contundente.

Mas seguimos. Falamos até agora somente da série clássica. E todas as outras que vieram em seguida? Em A Nova Geração somos apresentados às diversas críticas ao fascismo, à homofobia, ao capitalismo, ao colonialismo e tantos outros temas que são… políticos. Episódios como “The Neutral Zone” e “The Drumhead” são absolutamente políticos.

DS9 pode ser considerada a mais sombria de todas as encarnações de Star Trek e até por isso mesmo, talvez, a mais política. Nela somos confrontados com o racismo, o colonialismo, o genocídio, o fanatismo religioso, as relações desiguais e predatórias entre patrões e empregados, o ensino laico etc. etc. etc.

São tantos temas, tantas reflexões políticas que a tarefa de enumerá-las é difícil. Talvez um dos 45 minutos mais brilhantes de todos os tempos já apresentados na TV mundial seja o episódio “Far Beyond the Stars”, onde Ben Sisko e Benny Russell, no passado e no presente, de conectam, sem saber mais quem é o sonho, quem é o sonhador. Porém evidenciando que a luta contra o racismo atravessa os séculos.

Os negros ainda continuam sendo massacrados, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, seja na África ou no Haiti, ainda vítimas de desagregação social e econômica imposta pelos europeus ao longo de cinco séculos.

Star Trek nos faz refletir sobre isso, não somente nos episódios explicitamente políticos, mas também em ideias que a circundam desde sempre, como a Diretriz Primeira, um salto civilizacional. A Federação é uma sociedade sem classes, que superou o capitalismo e que tem outros objetivos muito além da concentração de riqueza.

Em Voyager encontramos a discussão sobre a guerra, sobre a indústria cultural, sobre a assimilação borg, nada mais, nada menos, do que a assimilação imperialista que submete culturas, as hegemoniza e as coloca para trabalhar em benefício do explorador.

Em Enterprise, encontramos discussões sobre a xenofobia, sobre o racismo, sobre a intolerância. As questões de gênero também são abordadas.

Em Discovery voltamos à reflexão sobre o fascismo, que volta e meia assombra a Federação. Como disse um pensador: o fascismo é eterno. Basta a mínima instabilidade econômica, social ou política, para que ele seja conjurado novamente. A ideologia é brilhantemente abordada em “The Sound of Thunder”.

Picard nos mostra com uma crueza belíssima o que é a o ódio ao diferente. A ficção científica tem nos mostrado há décadas a discussão sobre a vida artificial, tema abordado de maneira incrível por Picard. A representação da intolerância é feita pela relação entre humanos e androides.

Por essa e outras, que me parece inconcebível um fã de Star Trek não aceitar que a série é política sim. As evidências estão aí. Nessa época em que o racismo aflora com toda força, em que o fascismo perdeu a vergonha e saiu à luz do dia, mais do que nunca é importante reforçar o caráter político de Star Trek.

A série, como um todo, sempre se posicionou sobre temas políticos e sempre do lado certo da história, ou seja, ao lado dos oprimidos e não dos opressores. Isso não é óbvio para quem assiste?

O fã também deve se posicionar, pois quem não se manifesta diante da opressão já escolheu o lado do opressor. O racismo e o fascismo devem ser destruídos, sem mais delongas. O universo de Star Trek e a utopia da Federação representam um mundo sem essas chagas, que não são fatos da natureza. Pelo contrário, são históricas e como tais são instrumentos de perpetuação das classes dominantes que podem e devem ser combatidos até a vitória final.

É por isso que eu gosto e sempre irei gostar de Star Trek. Afinal, se trata de uma série antifascista, antirracista, antimachista, anti-homofóbica e, especialmente, anticapitalista.

É a mais política das séries.
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