segunda-feira, 27 de setembro de 2021

O kelpien Saru e o pintor Giotto

 

No episódio “Morrer tentando”, da terceira temporada de Star Trek: Discovery, o capitão Saru, em pleno século 32, menciona o pintor medieval Giotto di Bondone, que viveu entre os século XIII e XIV, portanto na Baixa Idade Média.

O contexto no qual Saru menciona o pintor é o da busca de novos olhares, de novas perspectivas para a reconstrução da Federação. O kelpien está preocupado com o Almirante Vance que mostra, com alguma razão, uma postura cautelosa e conservadora sobre missões exploratórias.

Então Saru, desejando que a Discovery possa sair explorando a galáxia, defende seu ponto de vista usando o exemplo de Giotto, que havia revolucionado a pintura a partir de uma nova abordagem artística.

O que fica claro nesse ponto é que tanto Saru quanto Giotto são ambos questionadores e promotores de rupturas, e daí vem a admiração do kelpien pelo artista italiano.

Vamos ver melhor isso.

A importância de Giotto para a história da pintura

Giotto foi um precursor da Renascença ao introduzir a perspectiva na pintura europeia que era, até então, bidimensional. Ou seja, as pinturas com profundidade que conhecemos hoje devem sua existência a Giotto.

Além disso, Giotto dá vida aos personagens representados em suas obras. Embora continue pintando motivos religiosos e cenas bíblicas, Giotto o faz com personagens que parecem gente de verdade, inclusive quando pinta os santos. Giotto é o agente de um importante ponto de inflexão na arte ocidental. Um artista que sinalizava o fim de uma era e a chegada de uma nova. O fim de uma era de trevas e a chegada das luzes.

No século 32 de Discovery temos esse mesmo problema colocado.

Características compartilhadas com Saru

Saru possui muitas coisas em comum com o pintor que admira. Assim como Giotto, Saru levava uma vida simples no campo, uma vida rural pré-determinada: passar pelo Vaharai e ser colhido pelos Bauls.

Giotto era apenas um menino que cuidava de ovelhas e gostava de desenhar e sonhava com um mundo diferente. Quando descoberto por Cimabue (o último grande pintor europeu de tradição bizantina) ele percorre uma nova trilha. Foi o seu talento e curiosidade que alteraram o rumo da sua vida camponesa.

Com Saru ocorre o mesmo. Curioso, inquieto, olhava para o céu e para o seu redor e questionava o mundo em que vivia. Sua curiosidade o levou a descobrir como mandar um sinal para o espaço. Sinal respondido pela Frota Estelar. E assim ele se tornou o primeiro kelpien da Frota e, como Giotto, encerrou uma era do seu povo e abriu uma nova. No século 32 descobrimos que Kaminar, o planeta de Saru já faz parte da Federação. O seu sonho foi realizado.

Em comum os dois têm essa fascinação pelos céus e pelas estrelas. Durante a vida de Giotto houve a passagem do cometa Halley, inspirando o artista na representação da Estrela de Belém na pintura Adoração dos Magos.

Incompreensão e reconhecimento

Saru foi desencorajado pelo seu pai na sua busca por conhecimento. Isso significa que Saru, me desculpem o clichê, estava à frente do seu tempo e por isso mesmo não era compreendido. A mesma coisa com Giotto.

Existem poucos registros sobre a vida do pintor medieval, mas penso que podemos afirmar com certeza que muitas pessoas devem ter estranhado o seu novo modo de pintar e até mesmo o desencorajado. Assim como Saru. Mas isso não impediu que Giotto fosse aclamado em sua própria época, algo raro na história da pintura. Inclusive por Dante Alighieri.

Saru também é reconhecido entre os seus pares como alguém notável, fora do comum. O fato de vir de um povo muito primitivo e chegar aos mais altos postos na Frota Estelar é a prova disso. E quando pensamos nisso percebemos claramente como existem pontos de contato nas trajetórias de Giotto e de Saru e é por isso que o nosso querido kelpien admira o pintor e a sua lição de que novas perspectivas sempre serão importantes para a história.

E é por isso também que nessa nova Idade das Trevas que Saru encontra no século 32 que ele resgata a figura de Giotto, um artista que teve a capacidade de lançar um novo olhar sobre o mundo e abrir novas perspectivas.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Os 55 anos de Star Trek: o ser humano em busca da Fronteira Final

 


Eu me tornei fã de Jornada nas Estrelas no ano em que ela completava 25 anos. Lá se vão exatas três décadas, e hoje, 8 de setembro de 2021, a jornada original de 5 anos da USS Enterprise chega a impressionantes 55 anos. Completar tanto tempo no ar com a vitalidade e a relevância que a série original exibe é pra poucos (não nos esquecendo de todas as suas séries derivadas, tão ou até mais importantes do que a original). 

Era quase impossível imaginar naquela altura que Star Trek chegaria tão longe, onde nenhuma série jamais esteve. E isso se deu não somente pelas histórias empolgantes, pelos atores carismáticos, pela imponente nave Enterprise. A permanência de Jornada nos corações e mentes de gerações de trekkers deve muito ao seu tema principal: o ser humano e a sua aventura pelo tempo e pelo espaço. 

Não apenas o ser humano em seus dilemas e ofícios, mas o ser humano naquilo que possui de melhor: o seu amor pelo conhecimento, a sua busca por evolução e a sua tentativa de viver uma vida de harmonia e paz. Estes elementos constituem a essência de Star Trek, que por isso mesmo apaixona a todos que compartilham dos mesmos ideais. O humanismo em Jornada nas Estrelas é onipresente. 

Enquanto a ficção científica até então apresentava mundos distópicos, com tristes fins para a humanidade, Gene Roddenberry (que neste ano de 2021 completaria 100 anos) tomou a direção oposta, criando uma utopia de união dos povos, de respeito às diferenças - e não só respeito, mas a valorização destas – e também um universo no qual os problemas típicos da nossa era – pobreza, violência, guerra, racismo etc. -  haviam sido superados. Um mundo de liberdade personificado na sociedade conhecida como Federação Unida de Planetas. 

Mas muito além da liberdade, a igualdade. Afinal, uma pode existir sem a outra? O incontornável filósofo Domenico Losurdo nos ensina que não. Para que haja, de fato, a verdadeira liberdade, é preciso antes de tudo a igualdade. A sociedade vista na Federação Unida de Planetas nos revela isso: já não há mais classes sociais, nem a exploração de poucos sobre muitos. Assim, os seres humanos se tornaram aptos para o pleno desenvolvimento, livres das amarras da opressão, seja de qual tipo for.

O meio-humano e meio-vulcano Spock, a partir da sua lógica, nos legou o ensinamento de que as necessidades de muitos se sobrepõem às necessidades de poucos. O capital, que já não mais existe naquele universo, dá lugar ao social, cede seu espaço à humanidade. Aliás, a filosofia geral de Star Trek também vem dos vulcanos: infinita diversidade em infinitas combinações. Igualdade, liberdade e a celebração da diferença. 

Star Trek demonstra que é com o contato com o outro que nos tornamos melhores. Que aprimoramos a nós mesmos para enriquecermos o nosso espírito e colaborarmos com o desenvolvimento coletivo, sendo esta última lição aprendida com o maior capitão de toda a história da Frota Estelar, o francês com sotaque e hábitos britânicos (Tea. Earl Grey. Hot.), Jean-Luc Picard. 

Tudo isso, e muito mais, toca fundo no imaginário das pessoas. Assim explica-se o devotado amor dos fãs pela série. Star Trek nos oferece valiosos ensinamentos que devem ser cultivados para fortalecermos a crença de que, sim, um outro mundo é possível. Não somente possível, mas uma imposição histórica sob pena de que a sua não realização comprometerá a própria existência da humanidade como um todo. 

Estamos muito longe ainda de atingirmos o quase paraíso imaginado por Gene Roddenberry, o que não nos impede de sonhar, e melhor ainda: sonhar juntos. E mais que isso: agir. Agir para construir a utopia. É isso que os trekkers têm feito ao longo dos 55 anos de Jornada nas Estrelas. Acreditamos em valores que ainda continuam sendo expressos só na tela da TV. Mas acreditamos que um dia poderemos chegar lá. E tentamos atuar como os nossos intrépidos heróis estelares. 

Star Trek se traduz em esperança. Star Trek nos motiva, nos alegra e nos aponta direções. Além dos inúmeros casos em que a série influenciou avanços científicos, não podemos nunca esquecer que o modelo social que a série apresenta deve servir como um parâmetro para os nossos próprios avanços sociais, aqui no atrasado século 21. 

A crítica social presente em incontáveis episódios de todas as suas encarnações também nos convida a refletir sobre nosso presente e a pensar nas formas de superar suas mazelas. Afinal, Star Trek nos conta histórias que se passam no espaço para falar da Terra; nos apresenta interessantes espécies alienígenas como metáforas da humanidade; e, mais importante, nos leva ao futuro para nos revelar o presente. Para que possamos revolucionar o velho mundo e construir o novo. Para que finalmente deixemos para trás a nossa pré-história e iniciemos, de fato, a história. Aí então essa longa jornada fará cada vez mais sentido. 

Vida longa e próspera a Star Trek. Que possamos viajar a bordo da Enterprise por muitos e muitos anos ainda, sempre em  busca da Fronteira Final, segunda estrela à direita, até o amanhecer...

sábado, 4 de setembro de 2021

Curso Star Trek: 55 anos de utopia e crítica social - agradecimentos

 Foi uma grande satisfação ministrar esse curso. Agradeço ao Jorge da produtora de cursos de televisão e cinema Cine Um pelo convite e apoio. Mas, sobretudo, meu obrigado vai para todas e todos que participaram. Foi ótimo discutir com vocês a utopia e a crítica social de Star Trek no momento em que seu criador, Gene Roddenberry, completaria 100 anos, e no ano em que sua criação imortal completa 55. Valeu! Uma vida longa e próspera.