Oi, pessoal! Sejam
bem-vindos à coluna Apenas um Trekker que, com muita honra, tenho a
oportunidade de inaugurar hoje no ColetiveArts!
Pra quem ainda
não me conhece, eu sou trekker em turno integral e professor e historiador nas
horas vagas. Então aqui nesse espaço vocês vão encontrar quinzenalmente algumas
linhas sobre elementos instigantes do universo de Jornada nas Estrelas (pra
quem tem mais de 40) e Star Trek pro pessoal da “nova geração” (opa, não
resisti).
Star Trek trata sobre
utopia, trata sobre a construção de uma sociedade sem classes sociais, sem
opressão, onde liberdade e igualdade são sinônimos. Star Trek, pra mim, é a
representação da sociedade pela qual os comunistas lutam há séculos. É por
essas e outras tantas razões que eu amo o universo da Federação Unida de
Planetas e nessa jornada (não resisti de novo) que iniciamos hoje iremos
visitar tudo que há de mais incrível nessa franquia de ficção científica que
completa 55 anos em setembro.
Bom, sem mais
delongas, passemos para o tema da coluna de hoje: duas utopias socialistas na
ficção científica.
Pra abordar isso
vou me ater a duas produções que apresentam sociedades socialistas no futuro.
Uma delas, é claro, é Star Trek. A outra é um pouco mais antiga e se trata de
um livro: Estrela Vermelha, obra escrita pelo revolucionário russo Aleksandr
Bogdánov, em 1908. A primeira foi criada por um texano que foi aviador na
Segunda Guerra Mundial e redator de discursos para o chefe da polícia de Los
Angeles. Mas não se deixe enganar por essas credenciais: Gene era um
progressista.
Já o russo
Bogdánov fazia parte do Partido Bolchevique sendo bem próximo a Lênin durante
um período. Era uma figura excêntrica que fazia experimentos pioneiros com
transfusão de sangue. Acabou morrendo vitimado por suas próprias experiências:
uma transfusão que deu errado.
Mas o ponto aqui
é que eu vejo pontos de contato muito interessantes nas obras que saíram das
mentes desses dois homens tão diferentes, mesmo que elas possuam também grandes
e óbvias diferenças, especialmente do ponto de vista formal – afinal, uma se
trata de obra televisiva/cinematográfica coletiva e diversificada e a outra é
uma peça literária escrita por um único autor.
Estrela Vermelha
é uma ficção científica utópica escrita no início do século XX e que nos remete
em alguns momentos ao universo de Star Trek. Publicado em 1908, muito
antes da era espacial, o livro narra uma curiosa viagem à Marte, onde prospera
uma civilização comunista.
No Brasil, a
obra só foi publicada em 2020, pela Boitempo, sendo esta edição a primeira
tradução para o português. Bogdánov, como já mencionado, era um bolchevique,
portanto um militante comunista. A atmosfera e os anseios revolucionários
no período em que escreveu a obra eram tão densos que podiam ser cortados a
faca. E isso pode ser claramente identificado no livro, que conta, em linhas
gerais, a seguinte história (spoiler alert!):
Certo dia, um
militante revolucionário chamado Leonid é abordado por um homem muito
misterioso que, com o tempo, acaba por se revelar um marciano. Assim, Leonid é
convidado a acompanhá-lo em uma insólita viagem até Marte para
conhecer a sociedade que existe lá. Esse marciano, chamado Menny, é o
líder de uma missão formada por cientistas, engenheiros, e astrônomos que
vieram à Terra em busca de uma pessoa que possuísse o perfil adequado para
acompanhá-los de volta a Marte. O eleito tinha que acreditar na revolução
social e ser um defensor da igualdade. É assim que o revolucionário Leonid é
escolhido pelos marcianos.
Chegando em
Marte, após uma viagem turbulenta, Leonid se depara com uma sociedade
onde não há Estado; a organização social e econômica é baseada
na propriedade coletiva; as decisões políticas são tomadas por meio
de conselhos no formato de assembleias. Outra coisa muito diferente
da vida na Terra é que as relações individuais e amorosas que conhecemos na
sociedade de classes já não mais existem lá. Não existe relação de posse entre
as pessoas, reflexo de uma sociedade comunista, onde todos são livres. Logo, o
amor também é livre.
O ponto chave do
livro é apresentar uma utopia socialista e realizar o contraste desta
com as sociedades de classes da Terra, de maneira dialética. Além disso, vemos
também como reage um indivíduo em uma sociedade totalmente diferente daquelas
que conhece e que não ajudou a construir, com os conflitos internos e externos
que advém dessa situação. De qualquer forma, Leonid fica encantado com o que
vê.
Um trecho
significativo do livro que comprova a sua admiração pela nova sociedade é
quando ele descobre que as plantas marcianas são vermelhas. O visitante conclui
que se o vermelho é a cor da bandeira socialista, consequentemente, ele
poderá se acostumar com a cor socialista da natureza marciana.
Menny lhe afirma
que na Terra também há uma natureza socialista por trás do tudo que se vê à
primeira vista. Basta usar óculos com lentes que absorvam a luz verde e
rapidamente o vermelho se manifestará nas plantas. É uma bela metáfora para
dizer afirmar a inevitabilidade da revolução socialista.
A utopia da
estrela vermelha de Bogdánov possui muito em comum com a utopia
socialista da Federação, apesar de algumas diferenças significativas. Ambas
apresentam sociedades sem classes sociais. Porém a relação com o trabalho
é diferente. Enquanto em Star Trek os replicadores (aparelhos que fazem instantaneamente
desde xícaras de chá Earl Grey até máquinas complexas) libertam as pessoas do
trabalho, em Marte todos precisam trabalhar, porém em jornadas de trabalho
diminutas e não necessariamente sempre no mesmo ofício.
Contudo, as
pessoas podem escolher outras atividades para trabalhar de acordo com a sua
vocação. A distribuição do trabalho é totalmente livre. Isso só pode acontecer
pela grande consciência social de todos, já que, segundo os marcianos,
o trabalho é uma necessidade natural do ser socialista desenvolvido. Além,
é claro, do grande poderio produtivo e da absoluta racionalidade do processo
econômico.
Assim, não
há necessidade de nenhum tipo de coerção para o trabalho. Esse aspecto
realmente se parece muito com o que vemos em Star Trek. Todas as pessoas
trabalham, mesmo não havendo nenhuma obrigatoriedade para isso, seja externa ou
seja por uma questão se sobrevivência.
As crianças são
criadas de forma comunitária. Existem as chamadas Casas das Crianças, onde
vivem até 300 crianças e jovens, que são educados todos juntos, independentemente
da idade. Os pais podem visitá-los quando quiserem e até mesmo morar por um
tempo nessas casas. Uma concepção bastante próxima às ideias de Alexandra
Kollontai sobre a família sob o comunismo. Eis um ponto bem diferente da
Federação, onde o modelo de família frequentemente é representado como o mesmo
dos dias atuais.
Outro aspecto de
divergência é que Marte em breve irá passar por uma crise de desabastecimento,
em função do aumento da população, fazendo com que se busque colonizar outro
planeta. A Federação abre colônias mas não em função de tragédias climáticas ou
produtivas na Terra. Bogdánov já antecipava os reflexos da exploração
desenfreada dos recursos naturais no capitalismo. As duas possibilidades de
colonização são Vênus ou a Terra.
Então existem
debates sobre como fazer isso. Um cientista chamado Sterny,
que inicialmente o leitor poderá associar à lógica dos vulcanos, é
profundamente frio e analítico. Mas segundo seus colegas, ao decompor seus
objetos de estudo, Sterny não obtém nada maior que o todo, pelo contrário,
obtém algo menor, prejudicando sua avaliação subjetiva e humana.
Perdendo sua
humanidade, Sterny propõe a aniquilação dos humanos da Terra já que não seria
possível coexistir com sociedades tão primitivas, afastando-se assim do que
seria um pensamento lógico tipicamente vulcano e também dos comunistas.
Evidentemente, a maioria não concorda com isso e a maior oposição vem de uma
cientista chamada Netty, que defende a tese de que deve haver a fusão das
duas humanidades, da Terra e de Marte, de forma que a Terra possa evoluir. Essa
é a posição da maioria.
Por um lado,
podemos notar uma semelhança com a Federação, tendo em vista que seria formada
uma união entre terráqueos e marcianos. Mas percebemos que há uma grande
diferença tecnológica e social entre as duas sociedades, fato que mobilizaria a
Primeira Diretriz, lei máxima que proíbe a interferência da Federação em outras
culturas.
As relações de
gênero também são diferentes. É quase impossível diferenciar um marciano homem
de uma mulher, eles são, no que se chamaria hoje, não-binários o que é algo
bastante ousado para a época em que o livro foi escrito (aqui é possível fazer
uma conexão com o episódio The Outcast, de Jornada nas Estrelas: A Nova
Geração, que abordo no meu livro Star Trek: utopia e crítica social.
Mas a questão é
que Leonid se apaixona por Menny, que até então considerava homem, e acaba por
descobrir que ela é de fato uma mulher. Entretanto, o amor livre que ocorre em
Marte é incompreendido por Leonid, enquanto ser humano do início do século XX,
mesmo sendo socialista.
Estrela Vermelha
foi uma obra escrita sessenta anos antes de Star Trek surgir. Mas podemos
ver muitas coisas em comum entre ambas. A utopia, a sociedade sem classes
e a completa liberdade em relação ao trabalho, sem dúvida alguma, são elementos
que aproximam as duas obras que foram na contramão das distopias. Tanto o livro
de Alexandr Bogdánov quanto a criação de Gene Roddenberry conseguem vislumbrar
outro mundo possível que não seja o capitalismo e o apocalipse inevitável que
virá se ele continuar existindo. Star Trek e Estrela Vermelha defendem a
utopia, ou seja, a construção de um novo mundo de igualdade, liberdade e da
realização integral do ser humano.
***
Eduardo Pacheco
Freitas é trekker em turno integral e
professor e historiador nas horas vagas. Já cometeu dois livros sobre Jornada
nas Estrelas: Star Trek: utopia e crítica social (2019) e O'Brien deve sofrer!
(2021).