Ao longo da história, em inúmeras civilizações, as mulheres estiveram submetidas aos homens. Na Grécia antiga eram pouco mais que animais, com a função exclusiva de parir os novos gregos. Na Europa medieval eram vistas como seres demoníacos, devido à interpretação literal dos escritos bíblicos que atribuíam à Eva a desgraça da humanidade. Durante a Revolução Industrial, equivaliam à metade de um homem como força de trabalho, recebendo assim metade do salário, em geral trabalhando muito mais.
Da mesma forma, as mulheres sempre tiveram o acesso
a política vedado por uma sociedade patriarcal, feita de homens para homens. No
Brasil, por exemplo, as mulheres passaram a ter o direito de voto somente em
1932, na esteira da modernização da sociedade brasileira iniciada com a
Revolução de 1930. Ou seja, faz menos de um século que as mulheres passaram a
exercer o direito fundamental do voto no nosso país. Em termos de tempo
histórico é muito pouco e, infelizmente, em 2021 ainda encontramos estas visões
bastante vivas entre nós, até mesmo em uma nova ascensão podemos dizer. São as
justificativas ideológicas para o machismo. Ainda hoje mulheres recebem
salários menores que os homens e são objetificadas pela publicidade, dentre
tantos outros exemplos que podem ser mobilizados.
Devido a isto, as mulheres sempre se encontraram em
posição frágil (ironicamente, não é o sexo feminino, de forma machista, chamado
de “sexo frágil”?), em constante ameaça sobre seus (já poucos) direitos. Como
afirmou a filósofa francesa Simone de Beauvoir: “Basta uma crise política,
econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”.
Nada mais verdadeiro.
A moralidade vigente, sempre impôs uma pesada carga às
mulheres, que nunca puderam viver livremente sua sexualidade, ao mesmo tempo em
que as barbaridades perpetradas pelos homens, como assédios ou estupros, ainda
nos dias de hoje são relativizadas. Não é raro ouvir que uma vítima de estupro
foi a responsável pelo crime, por estar vestida com roupas que, na visão
machista, seriam “inadequadas”.
Cabe ressaltar que a laboriosa conquista de direitos por
parte das mulheres nas últimas décadas se deve ao feminismo. E existe muita
confusão em relação aos termos feminismo e feminista, que são tidos por pessoas
ignorantes ou mal intencionadas como sinônimos de supremacia das mulheres sobre
os homens. Não se trata disso: o feminismo busca a igualdade de direitos entre
homens e mulheres, num mundo que sempre os tratou como desiguais. E mais: busca
a superação de um modelo de sociedade no qual as mulheres se aproximam a posses
dos homens, que a partir disto poderiam fazer o que bem entendessem com a “sua”
mulher. A questão da posse é fundamental nesse caso, revelando a conexão com a
sociedade de classes, com o capitalismo, com o mundo dividido entre os que
possuem e os que são possuídos.
Mas
após essa breve introdução, chegamos ao ponto central da coluna desta
semana: a atuação machista do nosso
velho conhecido Q em relação a nossa também velha conhecida Vash no episódio
“Q-less” (O Lance de Q), de Star Trek: Deep Space Nine.
Q,
como vocês devem saber, é aquele ser onipresente, onisciente e onipotente que
adora importunar o capitão Jean-Luc Picard, ao qual de maneira debochada chama
de “mon capitaine”. Devido ao grande sucesso do personagem, interpretado por
John De Lancie, Q estará de volta na segunda temporada de Star Trek: Picard, em
2022. Vash, uma arqueóloga muito pouco ética, também é conhecida dos trekkers
como interesse amoroso do nosso querido Picard, que também é arqueólogo nas
horas vagas.
Mas
a questão é que o casal Q e Vash é formado ao término do episódio “Q-pid” da 4ª
temporada de A Nova Geração. Entretanto, tempos depois, Vash termina
relacionamento (ninguém pode aguentar o irritante Q por muito tempo), fato que
não é bem aceito por Q, em atitude tipicamente machista de achar-se no direito
de forçar a companheira a permanecer em uma relação na qual ela já não se sente
feliz.
Vash,
que após uma temporada de 2 anos no Quadrante Gama, coletando artefatos
arqueológicos, chega pelo wormhole à Deep Space Nine, seguida por Q,
inconformado com o fim do relacionamento. Sendo assim, Q tenta de todas as
formas convencê-la a reatar, propondo viagens a lugares nunca visitados da
galáxia e até mesmo a outras galáxias, recebendo como resposta de Vash
sucessivas negativas, às quais teima em ignorar.
Desta forma, Q, que nas palavras do capitão Picard é
“desonesto, imoral, inconstante e irresponsável”, passa a demonstrar
comportamento egoísta e narcisista, típico daqueles homens que, por se
considerarem “donos” das mulheres, simplesmente não aceitam o não e acabam por
infligir toda sorte de violência ao objeto de suas paixões. Quem estiver no
caminho também sofre as consequências. Ao homem cegado pela obsessão que nasce
do machismo, não importa quem possa ser atingido, desde que seu objetivo seja
logrado.
O episódio representa com precisão este tipo de
situação. Quando a estação sofre — e todos que nela se encontram — uma grave
ameaça de destruição, o onipotente Q, que facilmente poderia salvar a todos,
simplesmente recusa-se a agir, já que não consegue demover Vash de sua decisão
de não seguir com o relacionamento. Condiciona a vida de todos na estação a
reatar seu relacionamento com Vash. Feminicida e homicida.
No fim, é claro, tudo dá certo e entre mortos e feridos
todos se salvam. Sobretudo Vash, que deixa de ser importunada por Q.
Infelizmente, no Brasil as coisas não são bem assim. No país, a cada 7.2
segundos uma mulher é vítima de violência física (Fonte: Relógios da Violência,
do Instituto Maria da Penha). Segundo dados do Mapa da Violência de 2015, no
ano de 2013, 13 mulheres morreram todos os dias vítimas de feminicídio, ou
seja, assassinadas em função de seu gênero, basicamente por homens que não
aceitaram o término do relacionamento.
É uma triste realidade, que exige não somente das
mulheres, mas dos homens também, a luta diária contra o machismo. Como qualquer
criação humana, o patriarcado e o machismo têm origens históricas, já apontadas
por Engels em sua obra seminal A origem da família, da propriedade privada e do
Estado, publicada em 1884. Cabe ao seres humanos, organizados em torno do bem
comum, construírem a sua própria história e relegar o machismo aos museus.
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Eduardo Pacheco Freitas é
professor, historiador e autor de dois livros sobre o universo de Jornada nas
Estrelas: Star Trek: utopia e crítica social (2019) e O'Brien deve sofrer! (2021).