Como se sabe, o capitalismo é, essencialmente, constituído por duas classes antagônicas: os trabalhadores e os capitalistas. Antagônicas pois possuem interesses diversos, a saber, os burgueses enriquecerem a custa da superexploração do trabalho da classe trabalhadora e, esta última, lutar por condições mais dignas de labuta e por melhores salários. Além disso, de acordo com as análises dos modos de produção e da história desenvolvidas por Karl Marx - o materialismo dialético e histórico - cada sistema de produção carrega dentro de si a contradição que o irá destruir. No caso do feudalismo, a formação da burguesia; no caso do capitalismo, a emergência do proletariado. Em suma, isto seria a luta de classes - o motor da história de acordo com o marxismo - , baseada nas contradições insuperáveis onde a oposição dialética entre tese e antítese cria uma terceira forma superior às anteriores, a síntese.
O sistema capitalista começa a se desenhar a partir dos escombros do modo de produção feudal, por volta do século XIV, quando a acumulação de capital oriunda do comércio, do mercantilismo e do metalismo irá possibilitar que a burguesia, além do poder econômico, passe a exercer também o poder político. Ou seja, aquela classe gestada no seio do feudalismo por fim o destruiu. O ápice deste movimento histórico se dá com a queda do Antigo Regime, no evento conhecido como Revolução Francesa, em 1789.
A partir da 1ª Revolução Industrial, em meados do século XVIII, uma nova classe desponta no horizonte histórico da humanidade, categorizada pelas ciências sociais como proletariado. Milhares de pessoas - que até então sobreviviam do seu trabalho artesanal ou agrário -, iniciam um grande deslocamento em direção aos centros urbanos, local onde as incipientes indústrias começam a surgir. Portanto, é assim que o proletariado se forma, a partir da exploração por parte da minoritária burguesia (proprietária das indústrias), do trabalho assalariado das massas de trabalhadores. Segundo Marx, o proletariado é a classe destinada historicamente a libertar-se através do processo revolucionário que acabará com as classes sociais, a síntese entre capital e trabalho que seria o comunismo.
No início desse processo, não havia qualquer tipo de proteção ao trabalho, que era realizado em jornadas extenuantes de até 16 horas por dia, vividas pelos trabalhadores em condições precárias de saúde e moradia. Não somente o trabalho dos homens era explorado, mas também o de mulheres e crianças, que em geral recebiam, respectivamente, 1/2 e 1/4 dos salários pagos aos homens. É neste contexto que surgem as primeiras formas de organização dos trabalhadores, tendo em vista obter melhores condições de trabalho e de salário. Estas organizações passaram a ser conhecidas como sindicatos, como veremos adiante.
Antes, precisamos destacar que, além da exploração do tempo de trabalho, algumas outras especificidades do sistema capitalista fazem com que, tendencialmente, haja a diminuição do valor da remuneração do trabalhador. Já que à burguesia pertencem os meios de produção (máquinas, matérias-primas, indústrias) e ao trabalhador resta somente sua força de trabalho (sua capacidade de produzir), esta é apropriada pelos capitalistas que procuram sempre diminuir o salário dos trabalhadores, de forma que possam, em sua busca incessante de maiores lucros, garantir ganhos maiores a custa do trabalho do proletariado.
De acordo com Engels, forma-se assim no capitalismo a chamada Lei do Salário, que acarreta na constante diminuição dos salários dos trabalhadores, fazendo com que se reforcem as algemas que escravizam cada vez mais o trabalhador ao produto de seu trabalho. Em outras palavras: ao trabalhar e sofrer a diminuição de sua remuneração para que os lucros dos donos dos meios de produção aumentem, o trabalhador precisa sujeitar-se a maiores jornadas de trabalho, colocar a família inteira para trabalhar (inclusive suas crianças), trabalhar mesmo doente, não tirar folgas nem férias etc.
Como o trabalhador sozinho não possui força alguma perante ao poderio econômico daquele que o emprega, torna-se imperioso que a classe se una em defesa de seus interesses. Daí a importância dos sindicatos, associações que promovem a segurança dos trabalhadores frente à voracidade com que a burguesia se atira sobre a força de trabalho do proletariado. Os sindicatos, que têm como objetivo primeiro impedir a redução dos salários - ou sua perpetuação em níveis baixíssimos, que servem apenas para manter o trabalhador vivo até o dia seguinte de trabalho -, fortalecem a classe, que assim se coloca em pé de igualdade ao patronato, este sim, devido ao seu número reduzido, está desde sempre coeso e bem organizado em defesa de seus lucros. Portanto, a partir da organização sindical, a exploração sem freios torna-se um pouco mais complicada para os patrões.
Na Federação dos Planetas Unidos, a luta de classes foi abolida por um motivo muito simples: já não existe a imposição do trabalho para suprir as necessidades materiais do ser humano. Logo, já não existe a menor possibilidade de exploração - nem de opressão - de uma classe sobre outra. O fator central nesta nova configuração social, política e econômica, são os replicadores. Estes equipamentos, de acesso gratuito e universal, são capazes de produzir instantaneamente desde xícaras de chá (Tea; Earl Grey; Hot. ;)) até máquinas complexas, anulando ao mesmo tempo a necessidade de dinheiro e a exigência do trabalho como modo de sobrevivência.
Por outro lado, os replicadores resolvem aquilo que o economista britânico John Maynard Keynes chamou de "problema econômico". Isto é, devido a finitude de bens e recursos há sempre a necessidade de escolhas e decisões que envolvem uma série de mecanismos, tais como preços ou o próprio mercado, que acabam por fazer que a acumulação de riqueza seja um dos motores da sociedade. A abundância promovida pelos replicadores elimina isto por completo.
Contudo, a maior consequência do advento dos replicadores na sociedade de Star Trek reside na total e completa emancipação do ser humano. Livre para ser e fazer o que quiser, a humanidade se aprimora, pois, libertando-se da unilateralidade surgida da divisão do trabalho, o ser humano se realiza plenamente. Embora a sociedade de Star Trek não possa ser caracterizada como uma sociedade comunista plena, sobretudo pelos traços colonialistas/imperialistas apresentados pela Federação, sempre vem à mente a conhecida passagem de A Ideologia Alemã (Marx; Engels, 1846), que cai com uma luva sobre quem são os seres humanos do século XXXIV em Star Trek:
"Na sociedade comunista, porém, onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma esfera de actividade exclusiva, é a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico."
No entanto, no universo de Star Trek, não existem somente os planetas da Federação, mas toda uma gama de civilizações que ainda utilizam dinheiro e vivem em sistemas econômicos semelhantes ao capitalismo da Terra no século XXI. Sem dúvida, os ferengis, são os maiores representantes na franquia da selvageria e da injustiça do capitalismo. Em Deep Space Nine, o ferengi Quark sintetiza de forma genial esse estado de coisas. Quark é o resumo do que o ser humano é no sistema capitalista: um acumulador e trocador de mercadorias e valores. Indo além: representa o capitalista por excelência, um explorador obcecado pelo lucro.
No episódio 16 da 4ª temporada de Deep Space Nine "Bar Association" (O Sindicato), Rom, irmão e funcionário de Quark no bar da estação, devido à exploração sem igual que sofre, está há semanas trabalhando doente. Quando finalmente desmaia e vai para a enfermaria, o Dr. Bashir, chocado com a situação, sugere que Rom deveria montar um sindicato, de modo a se proteger da ganância de Quark, já que não possui nem direito a férias nem a plano de saúde. Quando Rom retorna ao bar fica sabendo que Quark diminuirá o salário de todos os funcionários, devido a queda no faturamento pela ausência dos bajorianos, que se encontram no período de "limpeza", no qual devem se abster de qualquer atividade de recreação.
Aqui, Quark, enquanto proprietário dos meios de produção, aplica a Lei do Salário que vimos acima, reduzindo a remuneração dos seus empregados, de forma a manter seus lucros e forçá-los a trabalhar ainda mais. Assim, Rom decide reunir os funcionários do bar e propor a fundação de um sindicato, ideia que choca os empregados ferengis, temerosos da reação da Autoridade Comercial Ferengi (AFC), que representa no episódio o que seria uma espécie de sindicato patronal, que reprime fortemente qualquer tentativa de organização dos trabalhadores.
Por fim, o sindicato é constituído e, agora como fator de fortalecimento dos proletários, parte para cima do patrão com suas reivindicações. Quark as rejeita, fazendo com que não restem alternativas aos trabalhadores a não ser iniciar aquele que é o maior instrumento de pressão sobre o patronato: a greve. Quark não se dá por vencido e tenta implementar garçons holográficos, numa alusão clara a substituição dos trabalhadores por máquinas, expediente clássico da burguesia para aumentar seus lucros.
No entanto, a ideia não dá certo e Quark decide iniciar um diálogo com Rom, ao qual tenta subornar de modo que este encerre a greve. Rom, no entanto, demonstra grande consciência de classe e além de negar o suborno cita a máxima de Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista (1848): "Trabalhadores do mundo, uni-vos, vós não tendes nada a perder a não ser vossos grilhões". Sem dúvida alguma, Rom percebeu que Quark não pode sobreviver sem o trabalho de seus empregados e que isto concede enorme força à classe. É a tomada de consciência do proletariado.
Nesse meio tempo a greve continua e os trabalhadores passam a trabalhar na conscientização da clientela de Quark, fazendo com que esta inicie um boicote ao bar. Obviamente, existem aqueles que não acreditam na força da coletividade e mesmo assim continuam frequentado o estabelecimento, sendo Worf um deles. Chief O'Brien, que desde sempre representa o "working classe hero" de Deep Space Nine, apoiador de primeira hora da luta dos funcionários de Quark, tenta conscientizar e impedir que Worf continue frequentando o bar, no que ocorre uma altercação que leva à prisão os dois mais o Dr. Bashir ,que tentou interromper a briga. Além disto, O'Brien relembra um seu antepassado, líder sindical na Grã-Bretanha da Revolução Industrial, que acabou assassinado, tornando ainda mais dramática a situação.
Enquanto isso, a AFC, na figura de Brunt e de seus capangas nausicaanos, tenta intimidar não somente Rom e o sindicato, mas também Quark, de forma que este encontre uma maneira de encerrar o movimento e a greve. Quark é espancado gravemente pelos nausicaanos, contudo, Rom permanece inflexível e não abre mão de que Quark atenda as exigências de melhores condições de benefícios, salários e trabalho dos empregados do bar. Por fim, Quark, em típica manobra do personagem, encontra uma solução: decide ceder e atender as reivindicações do sindicato, de maneira secreta, todavia, de forma que os trabalhadores sejam beneficiados sem que a AFC tome conhecimento. A classe trabalhadora venceu.
Os funcionários retomam o trabalho, satisfeitos com o cumprimento de suas exigências. Rom, por sua vez, decide abandonar o bar e passa a atuar como técnico de reparos da estação, trabalho que lhe proporcionará condições muito melhores. Final feliz para todos. À exceção de Quark que, daqui pra frente, sabe que a relação com seus empregados, agora conscientes de sua força, nunca mais será a mesma.
Bar Association (Episódio 16 – Temporada 4)
Roteiro: Ira Steven Behr e Robert Hewitt Wolfe
Direção: LeVar Burton
Exibido pela primeira vez em 19/02/1996