sábado, 25 de junho de 2016

A homofobia retratada em Star Trek

O terrorismo, bem como a questão dos imigrantes e dos refugiados, o problema das alterações climáticas, o controle das armas e a luta contra o machismo são alguns dos principais temas contemporâneos.

Como a tradição de Star Trek é a de abordar questões da nossa época em histórias que se passam no futuro, podemos esperar que a próxima série, com estreia prevista para janeiro de 2017, toque nestes assuntos. 

Outro grande tema de nosso tempo diz respeito aos direitos dos homossexuais. Problemas como a união civil ou a adoção de filhos por parte de casais homoafetivos, por mais avanços que tenham experimentado nos últimos anos, ainda permanecem envoltos em tabus e preconceitos - sempre com risco de retrocessos capitaneados pelos bolsominions (bleargh!) da vez -, sendo imperiosa a discussão e a garantia de direitos iguais para pessoas de orientação hétero ou homossexual. 

Certamente, Star Trek poderá tratar deste tema em sua próxima incursão televisiva. E Bryan Fuller, showrunner da série,  já sinalizou nesse sentido, ao afirmar que o público progressista de Star Trek ficará feliz em ver que a tradição inclusiva da franquia continuará em 2017.

Kirk e Uhura 
Cabe uma rápida olhada ao passado: no auge da campanha pelos direitos civis dos negros nos EUA da década de 60, a série original promoveu o primeiro beijo "inter-racial" da televisão norte-americana. Igualmente, enquanto havia a guerra fria, a tripulação contava com um oficial russo. Star Trek foi construída sobre um conceito importante: infinita diversidade em infinitas combinações.

Há uma aproximação destas lutas políticas, pois elas têm em comum a garantia de direitos por um lado, e por outro a tolerância em relação ao diferente. Por estes motivos que Star Trek até hoje é reverenciada como entretenimento de alta qualidade, ao colocar importantes questões contemporâneas para discussão.

O problema da homofobia já foi abordado em Star Trek, ao menos em cinco episódios da franquia: dois em TNG, dois em DS9 e um em ENT. No entanto, foi nos episódios "The Outcast" (TNG, 5x17) e "Rejoined" (DS9, 4x06), que a questão foi melhor explorada através de grandiosas alegorias.

Soren
The Outcast

No episódio de TNG, a questão é colocada de forma bastante contundente. Escrito por Jeri Tailor, um nome importante a partir da quinta temporada de TNG e depois na criação de Voyager, o episódio inicia mostrando a cooperação da Enterprise com uma raça que não possui a distinção de gênero chamada J'naii, que precisa de ajuda para localizar uma nave auxiliar desaparecida.

Riker e Soren, piloto(a) dos j'naii são encarregados de iniciar as buscas, investigando o fenômeno do "espaço nulo". Desta forma, ambos ficam muito próximos e desenvolvem afeto e atração sexual um pelo outro. Contudo, para os j'naii - um povo sem gênero sexual definido - qualquer relação com um ser que seja masculino ou feminino é proibida e considerada bastante ofensiva, da mesma maneira que uma relação homossexual em nossa sociedade ainda é encarada como algo repulsivo por muitas pessoas.

Worf, em sua selvageria klingon, representa o preconceituoso nesta pequena fábula, que mesmo sem argumentos, se posiciona de maneira contrária a relações as quais não aceita. Quando a Dra. Crusher sugere que Soren tem interesse sexual por Riker, Worf afirma: "Um humano e um j'naii... impossível!" Questionado por qual razão pensa isso simplesmente muda de assunto.

Soren finalmente revela a Riker que tem interesse por ele. Explica que entre os j'naii existe um percentual de pessoas que apresentam inclinações masculinas ou femininas, sendo ela situada nesta última. No entanto, fala sobre seu temor de ser punida, já que os j'naii que apresentam esta orientação devem viver escondidos (em termos coloquiais: dentro do armário) para não serem humilhados e ridicularizados. E ainda mais grave: para não sofrerem tratamentos psiquiátricos compulsórios que busquem reverter sua tendência natural. Se você pensou na famigerada "cura gay" propalada por inúmeros obscurantistas, você fez a associação correta.

Após cumprirem com sucesso a missão de resgate, Soren e Riker ficam juntos. Os j'naii descobrem e Soren é detida, passando por uma espécie de julgamento. Riker procura intervir, mentindo que insistiu na relação com Soren, a qual teria recusado em se relacionar com ele, tentando salvá-la com isto. Questionada se esta era a verdade, Soren, cansada de se esconder e viver uma mentira, faz um discurso impressionante:

Eu sou fêmea. Eu nasci assim. Eu tive esses sentimentos, esses anseios, toda a minha vida. Isso não é antinatural. Não estou doente por me sentir assim. Eu não preciso ser ajudada. Eu não preciso ser curada. O que eu preciso, e todos aqueles que são como eu precisam, é a sua compreensão. E sua compaixão. Nós não os prejudicamos de qualquer maneira. E, contudo, somos desprezados e atacados. E tudo porque somos diferentes. O que fazemos não é diferente do que vocês fazem. Nós falamos e rimos. Nós reclamamos do trabalho. E nos preocupamos com a velhice. Falamos sobre nossas famílias e nos preocupamos com o futuro. E choramos com o outro quando as coisas parecem sem esperança. Todas as coisas amáveis que vocês fazem uns com os outros nós também fazemos. E por isso somos chamados de desajustados, desviados e criminosos. Que direito você tem de nos punir? Que direito você tem de nos mudar? O que faz você achar que pode ditar a forma como as pessoas se amam?

Uma fala poderosa! Um dos grandes momentos a respeito de direitos fundamentais, tolerância e diversidade em Star Trek em todos os tempos.

Porém, Soren é presa e encaminhada para o tratamento. Riker não se conforma e recebe a ajuda de Worf (lembrem que o personagem representava o preconceito, agora representa a superação do preconceito) em uma missão não-oficial, para resgatar Soren. Infelizmente, eles chegam muito tarde. Soren fora "curada".

Como frequentemente acontece na realidade, a opressão e o preconceito venceram desta vez.

Lenara e Jadzia
Rejoined

Outro episódio a abordar o preconceito em uma alegoria brilhante foi Rejoined, da quarta temporada de DS9. Escrito por Ronald D. Moore e René Echevarria, baseado em uma história deste último, foi dirigido por Avery Books (Sisko) e - espelhando o beijo inter-racial de Kirk e Uhura - mostrou o primeiro beijo homossexual em um episódio de Star Trek.

Tudo começa quando a cientista trill Dra. Lenara Kahn chega à estação para conduzir alguns experimentos. Kahn foi esposa de Dax em outra vida (como é sabido, os trill são uma espécie simbionte, que esporadicamente troca de hospedeiros). O casamento, na verdade, foi entre os hospedeiros Torias (de Dax) e Nilani (de Kahn). Tudo isso é muito confuso, e o que importa saber é que na sociedade trill existem regras rígidas sobre as relações de novos hospedeiros com pessoas do seu passado. Portanto, nem Jadzia, nem Lenara, embora tenham sido casadas em outra vida, devem manter contato, sobretudo em termos de relações afetivas ou sexuais. Como o Dr. Bashir explica para Kira, se trata mais de um tabu do que propriamente uma lei. Relacionar-se com alguém com o qual o trill já se relacionou em uma vida passada se chama "reassociação" e é visto como algo anormal por sua sociedade. Mais uma vez, vemos a intromissão de estruturas externas ao indivíduo naquilo que é estritamente privado, como a decisão pessoal de quem vamos ou não vamos amar. O trill que se reassociar é punido com o exílio de seu planeta natal. E o exílio para os trill significa a morte, já que assim não é possível ter acesso a novos hospedeiros.

Jadzia procura seu grande amigo Sisko, que, em uma posição moderada, lhe diz:

Eu sei que isso é difícil pra você. Eu sei como você se sente sobre Lenara. Mas eu quero que você pense sobre o que vai acontecer se você seguir com isso. Se você for exilada de Trill, não haverá mais hospedeiros para o seu simbionte. Quando Jadzia morrer, Dax morre.

Ou seja, a imposição desta prática social tem duas alternativas: ou você se submete e abandona a perspectiva de viver a vida que realmente deseja; ou você segue adiante e assina sua sentença de morte.

Portanto, o episódio aborda o preconceito de duas formas. Na primeira delas, mostra o quão horrível podem ser os tabus da sociedade, que não possuem nenhuma base no real e afetam dramaticamente a vida particular das pessoas. Em um segundo momento, há a realização da cena do beijo entre Jadzia e Lenara, tornando-se este um momento histórico da televisão mundial, ao apresentar pela primeira vez um beijo entre duas mulheres em uma história de Star Trek.

Aqui, mais uma vez, como no episódio de TNG, quem dita as regras é a tradição, personificada nesta história pelo trill Dr. Pren, que simplesmente abomina a possibilidade de Kahn voltar a relacionar-se com Dax. São regras, inventadas desde tempos imemoriais, que condicionam o comportamento social mesmo em novos contextos. Lenara e Jadzia, que tem toda uma história juntas, não podem revivê-la, devido a convenções sociais que não lhes dizem respeito. Eis o papel dos conservadores e dos tradicionalistas: o cerceamento da liberdade individual de cada um.

Lenara sofre a pressão de seu irmão, que também faz parte da missão científica trill a bordo da estação. Além do tabu social, há a cobrança familiar, para que tudo permaneça em seu devido lugar. Ao menos o lugar que a família tradicional arroga-se o direito de zelar.  Se Dr. Pren, por ser membro do ministério das ciências de Trill representa a opressão estatal, seu irmão representa a opressão familiar, tão poderosa quanto a primeira.

Por fim, mesmo amando Jadzia, Lenara decide não levar adiante a história, por temer as terríveis consequência que lhes seriam impostas. Novamente, um final infeliz, onde o amor foi vencido pelas estruturas conservadoras.

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Os dois episódios dialogam magistralmente e retratam uma das questões mais urgentes a serem resolvidas nos tempos atuais. Observemos: esses episódios foram produzidos há duas décadas e muito já se avançou, embora ainda haja muito a se avançar. Por outro lado, houve uma escalada reacionária que tenta asfixiar estes pequenos avanços e inviabilizar outros. A nova série, nas mãos de Bryan Fuller, poderá mais uma vez dar sua contribuição a este debate, como heroicamente Star Trek tem feito há 50 anos. Star Trek já educou muita gente, tenho esperança que continue educando em sua nova encarnação.


5 comentários:

  1. Espero o mesmo, pena que muitas pessoas não entendam a importância que existe por trás da série e seus desdobramentos ao longo dos anos. Desde a série original, dentro do contexto da guerra fria, da questão dos negros e gênero. É muito importante sim! Algumas pessoas nos julgam por pensar assim. Bom, não me importo sobre i que pensam de mim, apenas sinto por pessoas que não entendem a verdadeira importância e proporção dos temas tratados e da seriedade com que são tratados.

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    1. Lamentavelmente vejo muitas pessoas que não entendem Star Trek. Se dizem fãs, mas são racistas, machistas, homofóbicas. Nada mais contraditório, pois Star Trek foi construída sobre um conceito que é "infinita diversidade em infinitas combinações". Então, não resta muita dúvida sobre o caráter progressista que permeia toda a franquia. Sinto muito por aqueles que não entendem (ou pior, não querem entender). A minha sorte é que as leitoras e leitores desse blog são como você! Obrigado pelo comentário.

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  2. Embora tenha uma mulher negra, um oriental um russo e até o próprio Spock poderia dizer, no cenário central da Série clássica,tem muito machismo nos epsódios.Acabei da ver os 79 epsódios, e nos diálogos o machismo é gritante, chega até ser engraçado.

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    1. Temos que levar em consideração que a série original é uma produção da década de 60, onde a questão do machismo, embora já fosse discutida, não apresentava a relevância que possui nos dias atuais. A série traz uma sensibilidade de outra época, um pouco estranha, em alguns aspectos, para uma audiência em 2017. Então é com essa ressalva que devemos assisti-la. Já o machismo em Enterprise, do início dos anos 2000, acho imperdoável. Obrigado pelo comentário!

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