William Shatner afirma em seu documentário "Chaos on the bridge" ser fascinado pela luta por poder que ocorreu nos turbulentos anos iniciais de Star Trek: The Next Generation (TNG). Foi este fascínio que o levou a realizar o filme, no qual busca investigar a criação desta série e a volta de Gene Roddenberry - o Grande Pássaro da Galáxia - à cena.
Shatner diz:
"Poder é efêmero. É o que se é percebido. Para o poder existir, deve ser reconhecido pelas pessoas envolvidas no trabalho. O que comecei a ver era Gene Roddenberry, o criador de Star Trek, envelhecendo e com a saúde debilitada, tentando se ater à sua visão criativa, seu legado e, finalmente, seu poder."
Em 1986, com o lançamento de "Star Trek IV: The Voyage Home", e com as comemorações de 20 anos da franquia, a Paramount decidiu criar um novo programa, com ou sem a participação de Gene Roddenberry, que a esta altura planejava aposentar-se. As negociações foram tensas, até que Gene tomou a decisão de participar do novo projeto. Era sua chance de recuperar o poder perdido sobre Star Trek.
O Guia para Roteiristas e Diretores de Star Trek: The Next Generation (Writer/Director's Guide), datado de 23 de março de 1987, é a materialização inicial deste poder. O todo-poderoso criador de Jornada nas Estrelas revelava ao mundo um novo evangelho. Palavra do Senhor.
A "Bíblia" de TNG - expressão utilizada por Roddenberry no próprio guia - é dividida em seis pequenos capítulos datilografados pelo próprio autor:
1) These are the voyages (p. 1-7): explicações sobre o contexto das novas histórias da Enterprise, bem como o que mudou e o que não mudou em relação à série original e breves descrições dos novos personagens.
2) The script (p. 8-13): indicações sobre o formato do roteiro e dicas sobre o que funciona e o que não funciona em uma história de Star Trek.
3) The starship Enterprise (p. 14-22): descrições sobre a nave, sobre uniformes, novas tecnologias, etc.
4) More on the starship crew (p. 23-33): aprofundamento dos perfis dos novos personagens, esboçados de maneira superficial no capítulo 1.
5) Writer's and director's notes (p. 34-45): explicações sobre conceitos básicos de Star Trek, tais como: "Federação", "Primeira Diretriz", "Frota Estelar", "Raio trator", Tricorder", "Turbolift", "Warp drive", "Phasers", "Torpedos fotônicos", etc.
Além destes capítulos há um apêndice (p. 46-48) tratando de terminologia científica.
Um fato interessante é que, na primeira página do Guia, há um aviso aos autores de que não serão aceitas submissões de histórias não solicitadas, havendo como única exceção os roteiros que sejam encaminhados por agentes literários reconhecidos, com sólida reputação como representantes de roteiristas profissionais de TV. No entanto, não há nada de incomum nisto, sendo esta uma política tradicional da maior parte dos produtores, como forma de evitar uma avalanche de histórias que não poderiam ser analisadas.
Novas aventuras, novos contextos
Roddenberry estava empolgado com a chance de poder recriar a sua obra-prima, e com todas as possibilidade advindas disto, contudo sem deixar de observar o referencial construído pela série original, tanto nas coisas que deveriam ser seguidas quanto nas que não poderiam ser usadas. Para isso, Gene faz algumas explicações contextuais, que poderiam colocar até mesmo o mais ingênuo roteirista a par do universo com o qual iria trabalhar. Coisas como a natureza da missão da nave, qual o período em que estas novas aventuras se situavam em relação às histórias contadas pela série-mãe, etc., são colocadas de maneira didática pelo criador de Star Trek.
No seguinte trecho, em tradução livre, estas questões ficam evidentes:
Outra preocupação de Roddenberry era salientar algumas diferenças naquilo que concerne à exploração da galáxia nos diferentes períodos das duas séries. Por exemplo, no tempo de Star Trek: The Original Series (TOS), a galáxia havia sido mapeada em apenas 4% de sua extensão (não explorada, Gene faz questão de frisar), enquanto na época de TNG este percentual já havia subido para 19%. Ou seja, no século 24 nos deparamos com outro contexto em termos de conhecimento humano sobre a galáxia.
Evidentemente, TOS pairava como uma grande sombra acima da nova produção. Era inevitável ignorar a série original como um parâmetro. Sendo assim, Gene redigiu o Guia de forma a explicitar quais seriam as permanências e quais seriam as rupturas em relação à série que dera origem a tudo. Como principais permanências, são destacados o espírito de "band of brothers" do programa, que deveria se estruturar sobre personagens de um grupo familiar, não apenas como uma "star and co-star series". A afeição que cada membro desta "família" sentiria um pelo outro era um tema caro a Gene Roddenberry, e acabou causando sérios problemas nas primeiras temporadas, onde a ausência de conflitos dificultava a vida dos roteiristas. Outra continuidade estava na espaçonave, "quase a mesma", na descrição de Roddenberry. De fato, o nome seria o mesmo: Enterprise. Porém, com duas vezes o comprimento da nave original e quase 8 vezes o seu tamanho. Gene queria que a nave possuísse formas que lembrassem a nave original, porém sem a "esterilidade de uma nave de guerra", aspecto que ele considerava existir na Enterprise de TOS. Por fim, Roddenberry insistia na permanência do formato de entretenimento de ação e aventura, no entanto, sem esquecer daquela que já se tornara uma assinatura da franquia: a abordagem de problemas contemporâneos da humanidade.
Um detalhe importante é o apelo para que os escritores criassem histórias a partir dos seus próprios interesses pessoais, revelando a confiança de Gene Roddenberry na criatividade humana e sua crença na liberdade de criação.
Os novos personagens
Contudo, os tempos eram outros, o mundo era outro e o programa também seria outro. Desta forma, nem tudo poderia ser igual ou muito parecido com a série da década de 60. E as principais rupturas com o passado, de acordo com Roddenberry, residiriam nos novos personagens. No primeiro capítulo há um esboço rápido do perfil de 8 personagens principais: Capitão Picard, Comandante Riker, Tenente Comandante Data, Tenente Deanna Troi, Tenente Natasha Yar, Tenente Geordi La Forge, Dra. Beverly Crusher e Wesley Crusher. Sentiram falta de alguém? Worf! Sim, o personagem de Worf não é mencionado no Guia. Umas das explicações para essa ausência é que a Tenente Yar teria o protagonismo que futuramente seria de Worf. O personagem klingon somente viria a crescer quando Denise Crosby, a tenente Tasha Yar, decidiu abandonar o programa e não renovar contrato para a segunda temporada. A personagem, então chefe da segurança da nave, é morta no episódio "Skin of evil" e seu cargo é ocupado pelo klingon. Aliás, sobre os klingons o Guia traz uma sugestão surpreendente de Roddenberry. Para ele os klingons deveriam participar da Federação:
Evidentemente a ideia da participação dos klingons na Federação acabou sendo concretizada de outra forma, através de Worf, um órfão adotado por pais humanos. Mas vemos a base desta ideia no texto de Roddenberry. Outro ponto interessante é que o planeta klingon a esta altura ainda não tinha um nome próprio, na série será chamado por muito tempo de "klingon homeworld" e por Roddenberry, aqui no Guia, somente "Klingon". O nome Qo'noS será usado pela primeira vez para denominar o mundo klingon apenas em 1991, no filme "Star Trek VI: The Undiscovered Country".
É somente no capítulo 7 da bíblia de TNG que Gene Roddenberry descreve com mais detalhes cada um dos personagens. Não cabe reproduzirmos na totalidade estas descrições aqui, mas vale a pena conferirmos alguns aspectos mais interessantes. Por exemplo, o capitão Picard é descrito como um homem mais experiente que Kirk e que não se sente confortável em ter crianças e famílias a bordo da Enterprise. Picard, orgulhoso de sua ascendência francesa,
Além disso, Gene o descreve como possuidor de uma "velada, mas profunda relação de pai e filho com William Riker" (p. 7). Embora Picard não saiba bem como lidar com crianças, Wesley Crusher incluso, Roddenberry nos revela que "tendo notado os atrativos de sua jovem mãe isto também tem influência sobre seus sentimentos nesta área" (p. 23). Ou seja, o romance entre Picard e a Dra. Crusher já era previsto desde a primeira temporada.
A respeito de William Riker é mencionado que seu cargo o coloca no comando das missões externas, preservando a segurança do capitão. Obviamente, é descrito como um homem muito interessado em mulheres e que é "intelectualmente comprometido com a igualdade sexual" (p. 25). No entanto, Riker é retratado no Guia como alguém que tem dificuldades em aceitar Data como um igual na tripulação. Isto fica claro já no episódio piloto, sendo resolvido ao longo da série, até se tornarem grandes amigos.
Data, por sua vez, é descrito como um androide tão perfeito que "somente um habilidoso biologista poderia saber que ele não é feito de carne e sangue" (p. 26) e que sua aparência étnica poderia situá-lo "como representante de qualquer grupo racial entre a Oceania e o Oriente Médio" (p. 26). Sua origem, conforme está no Guia, é um pouco diversa da mostrada de fato na série. Estaria ligada a uma colônia "terráqueo-asiática" em vias de extinção. De acordo com o guia, Data foi criado para servir como repositório das memórias de todos os colonos que inexoravelmente viriam a desaparecer, tendo sido construído por "aliens nunca vistos" (p. 26). Porém, não são mencionados o Doutor Soong (seu criador), Lore (sua nêmesis) e a Entidade Cristalina, que desempenham papeis determinantes na origem do personagem, conforme visto no episódio "Datalore", da primeira temporada. Por outro lado, como um traço importante da personalidade de Data, é informada a sua história favorita: Pinóquio.
Geordi, além de ser descrito como melhor amigo de Data - amizade reforçada pelo fato de ambos desejaram ser "plenamente humanos" (p.31) - é tido como alguém que "quer ser o capitão Picard quando crescer" (p. 31), e que apesar de ser muito jovem tem grande maturidade. La Forge não foi pensado como um membro da engenharia, mas sim como um professor: "sua especialidade abordo da nave é a escola para as crianças" (p. 31). É relatado como um homem negro, com uma deficiência visual de nascença, sendo esta o grande desgosto de sua vida. Contudo, isso não o impede de pilotar a nave: "Sim, a Enterprise é pilotada por um homem cego" (p. 16), nos revela um divertido Gene Roddenberry. O seu visor e suas funcionalidades são descritos da seguinte forma:
Um certo machismo de Gene Roddenberry é revelado quando ele redige os perfis das personagens mulheres. Beverly Crusher, Deanna Troi e Tasha Yar são, respectivamente, descritas como "uma linda mulher dos seus trinta e poucos anos com formas muito femininas" (p. 32), "uma atraente oficial da Frota" (p. 6) e "de ascendência ucraniana, possui um ótimo e belo corpo que teria pasmado os homens de séculos anteriores (...) um corpo muito feminino" (p. 30).
Contudo, a grande novidade é a função de conselheira, exercida por Deanna Troi, que a eleva ao posto de maior "importância, abaixo apenas do de capitão e primeiro oficial" (p. 28). Suas qualidades telepáticas de betazóide são destacadas no texto devido a isto. É importante a observação que Gene faz a respeito dos "poderes" de Deanna não serem sobrenaturais. Antes, no Guia, já existe o alerta sobre as diferenças entre fantasia e ficção científica. Para Gene a diferença entre ambas é profunda e a ficção científica sempre deve se pautar pela "extrapolação de uma teoria ou fato científico comumente aceitos" (p. 10). Em função disto, há a explicação sobre os dons telepáticos de Deanna, usando como referência a série original:
Com base nisso, podemos afirmar que os betazóides funcionam como uma espécie de novos vulcanos em TNG: alienígenas com funções mentais especiais à serviço da Federação. Um fato que corrobora esta hipótese é a quase ausência completa de vulcanos em TNG, devido ao entendimento de Gene Roddenberry de que novas espécies deveriam ser exploradas, sem o autoplágio em relação a TOS:
O envolvimento amoroso anterior de Troi e Riker também já é assinalado no Guia, bem como a origem traumática de Tasha Yar em uma colônia que enfrentou sérios problemas ambientais e sociais. A maternidade está muito associada à personagem de Beverly Crusher, já que ela leva seu filho, Wesley Crusher a bordo da Enterprise. Wes é descrito como um garoto normal de 15 anos que, apesar de ter herdado a genialidade de seus país, "não é um nerd" (p. 33).
A importância da verossimilhança
Em 1986, Jornada nas Estrelas já era um produto da cultura pop plenamente consolidado, e sua herança, por tudo que havia realizado até então, obviamente não poderia ser ignorada. Devido a este motivo, está presente no Guia tudo aquilo que Gene Roddenberry considerava funcionar ou não funcionar em termos de Star Trek, com base na experiência anterior.
A questão da verossimilhança era central para Roddenberry. Embora seja uma obra de ficção, Star Trek, de acordo com seu criador, assentava seu sucesso sobre personagens complexos e credíveis, sem melodrama:
Gene gostaria que os personagens fossem inspiradores, mas que não fossem rasos e apresentassem diversas facetas humanas: "Star Trek não é melodrama" (p. 11), ele afirma. Por outro lado, há um lembrete importante, sobre qual o grande herói das histórias de Jornada nas Estrelas:
Desta forma, o Grande Pássaro da Galáxia anuncia o novo evangelho, tudo aquilo que funciona e o que não funciona em uma história de Star Trek. Histórias sobre forças psíquicas ou misteriosos poderes deveriam ser evitadas a todo custo, não importasse o quão fantástica fosse a trama. Gene volta ao exemplo de Deanna Troi, afirmando que sua telepatia só é permitida em Star Trek por haver cientistas renomados que consideram a possibilidade desta habilidade. Contudo, há o esclarecimento de que Deanna apenas pode "ler" emoções.
Outro veto está em histórias onde a tripulação agisse como "polícia da galáxia" (p. 10), evocando para isso a Primeira Diretriz. Gene não queria também histórias com os personagens de TOS. Na verdade esta regra nunca foi levada em consideração. Como sabemos, McCoy aparece logo no primeiro episódio. Spock e Scotty também participaram mais a frente.
Em possível referência a Star Wars, o Grande Pássaro recomenda que não se escrevam histórias sobre "princesas" (p. 10), nem sobre cavaleiros, dragões, etc., pelo simples fato de que isto tem a ver com "fantasia, que nosso formato não permite", havendo sempre a necessidade de existir uma "base na realidade" (p. 10). Igualmente, não eram desejáveis "guerras contra klingons ou romulanos e tampouco histórias com vulcanos" (p. 10), nem enredos em que a tecnologia colocasse a tripulação em risco, algo que, evidentemente, nunca foi seguido.
A vida na nova Enterprise
Qualidade de vida é uma expressão utilizada largamente em todo o Guia. Aparentemente, este seria o valor principal que Gene Roddenberry desejava imprimir em The Next Generation. "A Enterprise foi desenhada para ser um lar" (p. 14), afirma o criador. "Lar em sentido literal", já que a nova espaçonave comporta até 1012 pessoas, e seu interior é mais confortável, mais iluminado e com plantas decorativas. De acordo com o Guia, no século 24, devido a duração das missões, os tripulantes são encorajados a levarem consigo suas famílias a bordo das naves onde estão comissionados.
Impossível não lembrarmos dos holodecks, talvez a tecnologia mais fascinante de TNG. Na descrição do Guia:
Ainda dentro da perspectiva da qualidade de vida, Roddenberry escreve sobre os novos uniformes no século 24. Não perde a oportunidade de dar uma leve alfinetada nos sisudos uniformes usados nos filmes de Jornada nas Estrelas:
Por fim, há toda uma seção do Guia dedicada em explicar, em linhas gerais, novas tecnologias e diferenças importantes da nova Enterprise e do século 24. Agora os comunicadores fazem parte da insígnia, os capitães da Frota deixaram de liderar as equipes avançadas em planetas perigosos e a seção disco da nave pode se separar da "seção de batalha" (p. 38).
Contudo, apesar das diferenças de Star Trek: A Nova Geração em relação à série original, a visão otimista do futuro de Gene Roddenberry é a constante que amarra ambas as séries. O Grande Pássaro da Galáxia anuncia as boas novas: "a Terra no século 24 é um paraíso" (p. 35). Finalmente, a humanidade pôde resiolver todos os problemas que enfrentou por milênios e a Terra se converteu em um Éden, "com grandes e protegidas áreas selvagens, grandes parques, lindas cidades, e uma população educada e compassiva, que aprendeu a apreciar a vida como uma grande aventura" (p. 35).
O "Guia para Roteiristas e Diretores de Star Trek: The Next Generation (Writer/Director's Guide)" é um documento que carrega o pensamento vivo de Gene Roddenberry. Ao lê-lo, é como se visitássemos sua mente durante o processo de criação da nova Enterprise, dos novos personagens, das novas tecnologias e das novas sensibilidades do século 24. Embora algumas de suas sugestões não viessem a ser usadas de fato, o Guia é, realmente, uma espécie de bíblia de TNG. Com seus dogmas (nem sempre seguidos pelos fiéis) e sua oração (Estas são as viagens...), é o livro fundador da mais interessante encarnação de Jornada nas Estrelas. Era o poder do Criador se manifestando novamente.
Palavra do Senhor: o novo evangelho do Grande Pássaro da Galáxia |
Roddenberry estava empolgado com a chance de poder recriar a sua obra-prima, e com todas as possibilidade advindas disto, contudo sem deixar de observar o referencial construído pela série original, tanto nas coisas que deveriam ser seguidas quanto nas que não poderiam ser usadas. Para isso, Gene faz algumas explicações contextuais, que poderiam colocar até mesmo o mais ingênuo roteirista a par do universo com o qual iria trabalhar. Coisas como a natureza da missão da nave, qual o período em que estas novas aventuras se situavam em relação às histórias contadas pela série-mãe, etc., são colocadas de maneira didática pelo criador de Star Trek.
No seguinte trecho, em tradução livre, estas questões ficam evidentes:
"Star Trek: The Next Generation se situa próxima ao início do século 24. 78 anos se passaram desde o tempo de Kirk e Spock. Eles já entraram para a história - mas são reconhecidos como lendas em toda a Federação e mesmo além" (p. 3).
Outra preocupação de Roddenberry era salientar algumas diferenças naquilo que concerne à exploração da galáxia nos diferentes períodos das duas séries. Por exemplo, no tempo de Star Trek: The Original Series (TOS), a galáxia havia sido mapeada em apenas 4% de sua extensão (não explorada, Gene faz questão de frisar), enquanto na época de TNG este percentual já havia subido para 19%. Ou seja, no século 24 nos deparamos com outro contexto em termos de conhecimento humano sobre a galáxia.
TOS: o grande parâmetro |
"Como antes, sem negligenciarmos a importância do entretenimento, convidamos os roteiristas a considerarem premissas envolvendo os desafios encarados pela humanidade nos dias de hoje (os anos 80 e 90), especialmente aqueles que sejam de interesse pessoal do autor." (p. 4)
Um detalhe importante é o apelo para que os escritores criassem histórias a partir dos seus próprios interesses pessoais, revelando a confiança de Gene Roddenberry na criatividade humana e sua crença na liberdade de criação.
TOS x TNG: nova série, novos personagens |
Contudo, os tempos eram outros, o mundo era outro e o programa também seria outro. Desta forma, nem tudo poderia ser igual ou muito parecido com a série da década de 60. E as principais rupturas com o passado, de acordo com Roddenberry, residiriam nos novos personagens. No primeiro capítulo há um esboço rápido do perfil de 8 personagens principais: Capitão Picard, Comandante Riker, Tenente Comandante Data, Tenente Deanna Troi, Tenente Natasha Yar, Tenente Geordi La Forge, Dra. Beverly Crusher e Wesley Crusher. Sentiram falta de alguém? Worf! Sim, o personagem de Worf não é mencionado no Guia. Umas das explicações para essa ausência é que a Tenente Yar teria o protagonismo que futuramente seria de Worf. O personagem klingon somente viria a crescer quando Denise Crosby, a tenente Tasha Yar, decidiu abandonar o programa e não renovar contrato para a segunda temporada. A personagem, então chefe da segurança da nave, é morta no episódio "Skin of evil" e seu cargo é ocupado pelo klingon. Aliás, sobre os klingons o Guia traz uma sugestão surpreendente de Roddenberry. Para ele os klingons deveriam participar da Federação:
"Muito recentemente, Klingon ingressou na Federação e nós começamos a ver oficiais klingons na Frota Estelar" (p. 36).
Worf: personagem originalmente sem importância |
É somente no capítulo 7 da bíblia de TNG que Gene Roddenberry descreve com mais detalhes cada um dos personagens. Não cabe reproduzirmos na totalidade estas descrições aqui, mas vale a pena conferirmos alguns aspectos mais interessantes. Por exemplo, o capitão Picard é descrito como um homem mais experiente que Kirk e que não se sente confortável em ter crianças e famílias a bordo da Enterprise. Picard, orgulhoso de sua ascendência francesa,
"finge acreditar, em conversas com amigos, que a França representa a única civilização verdadeira a aparecer na Terra, e se delicia com companhias espirituosas que tentam provar o mesmo sobre a Inglaterra, Itália ou China" (p. 23).
Além disso, Gene o descreve como possuidor de uma "velada, mas profunda relação de pai e filho com William Riker" (p. 7). Embora Picard não saiba bem como lidar com crianças, Wesley Crusher incluso, Roddenberry nos revela que "tendo notado os atrativos de sua jovem mãe isto também tem influência sobre seus sentimentos nesta área" (p. 23). Ou seja, o romance entre Picard e a Dra. Crusher já era previsto desde a primeira temporada.
A respeito de William Riker é mencionado que seu cargo o coloca no comando das missões externas, preservando a segurança do capitão. Obviamente, é descrito como um homem muito interessado em mulheres e que é "intelectualmente comprometido com a igualdade sexual" (p. 25). No entanto, Riker é retratado no Guia como alguém que tem dificuldades em aceitar Data como um igual na tripulação. Isto fica claro já no episódio piloto, sendo resolvido ao longo da série, até se tornarem grandes amigos.
Data: origens divergentes |
Quero ser o capitão quando crescer |
"Geordi usa um incomum dispositivo protético que lhe dá visão superior em relação a olhos humanos comuns. Sua "visão" vai além da luz visível, acima do espectro ultra-violeta e abaixo do alcance do infra-vermelho. Assim, ele pode "ver" o calor de um corpo humano ou de uma pegada recente, ou na completa escuridão. Ele também pode ver telescópica e microscopicamente". (p. 31)
Um certo machismo de Gene Roddenberry é revelado quando ele redige os perfis das personagens mulheres. Beverly Crusher, Deanna Troi e Tasha Yar são, respectivamente, descritas como "uma linda mulher dos seus trinta e poucos anos com formas muito femininas" (p. 32), "uma atraente oficial da Frota" (p. 6) e "de ascendência ucraniana, possui um ótimo e belo corpo que teria pasmado os homens de séculos anteriores (...) um corpo muito feminino" (p. 30).
Nova espécie, mas a minissaia continua a mesma... |
"Consideramos não haver nada de sobrenatural nesta habilidade. Por exemplo, as habilidades mentais de Spock na série original foram explicadas como uma extrapolação de teorias científicas frequentemente aceitas de que toda a vida no universo está de alguma forma relacionada." (p. 28)
Com base nisso, podemos afirmar que os betazóides funcionam como uma espécie de novos vulcanos em TNG: alienígenas com funções mentais especiais à serviço da Federação. Um fato que corrobora esta hipótese é a quase ausência completa de vulcanos em TNG, devido ao entendimento de Gene Roddenberry de que novas espécies deveriam ser exploradas, sem o autoplágio em relação a TOS:
"Estamos determinados a não copiarmos nós mesmos e acreditamos que existem muitos outros aliens interessantes em uma galáxia com bilhões de estrelas e planetas." (p. 11)
O envolvimento amoroso anterior de Troi e Riker também já é assinalado no Guia, bem como a origem traumática de Tasha Yar em uma colônia que enfrentou sérios problemas ambientais e sociais. A maternidade está muito associada à personagem de Beverly Crusher, já que ela leva seu filho, Wesley Crusher a bordo da Enterprise. Wes é descrito como um garoto normal de 15 anos que, apesar de ter herdado a genialidade de seus país, "não é um nerd" (p. 33).
A importância da verossimilhança
Em 1986, Jornada nas Estrelas já era um produto da cultura pop plenamente consolidado, e sua herança, por tudo que havia realizado até então, obviamente não poderia ser ignorada. Devido a este motivo, está presente no Guia tudo aquilo que Gene Roddenberry considerava funcionar ou não funcionar em termos de Star Trek, com base na experiência anterior.
A questão da verossimilhança era central para Roddenberry. Embora seja uma obra de ficção, Star Trek, de acordo com seu criador, assentava seu sucesso sobre personagens complexos e credíveis, sem melodrama:
"As pessoas devem ser verossímeis - como se elas vivessem em nosso século. A tripulação da Enterprise é inteligente, espirituosa, cheia de ideias e de compaixão, cuidando dos seres humanos - mas eles têm muitos defeitos e fraquezas também - apesar de não serem tão graves quanto os da nossa época." (p. 9)
Gene gostaria que os personagens fossem inspiradores, mas que não fossem rasos e apresentassem diversas facetas humanas: "Star Trek não é melodrama" (p. 11), ele afirma. Por outro lado, há um lembrete importante, sobre qual o grande herói das histórias de Jornada nas Estrelas:
"Por favor, lembre-se que a maior heroína de Star Trek sempre tem sido a espaçonave Enterprise e sua missão. A nave não é apenas um veículo espacial - ela é a pedra-de-toque pela qual todos nossos personagens revelam quem são e o que fazem no universo." (p. 9)
A personagem mais importante |
Outro veto está em histórias onde a tripulação agisse como "polícia da galáxia" (p. 10), evocando para isso a Primeira Diretriz. Gene não queria também histórias com os personagens de TOS. Na verdade esta regra nunca foi levada em consideração. Como sabemos, McCoy aparece logo no primeiro episódio. Spock e Scotty também participaram mais a frente.
Em possível referência a Star Wars, o Grande Pássaro recomenda que não se escrevam histórias sobre "princesas" (p. 10), nem sobre cavaleiros, dragões, etc., pelo simples fato de que isto tem a ver com "fantasia, que nosso formato não permite", havendo sempre a necessidade de existir uma "base na realidade" (p. 10). Igualmente, não eram desejáveis "guerras contra klingons ou romulanos e tampouco histórias com vulcanos" (p. 10), nem enredos em que a tecnologia colocasse a tripulação em risco, algo que, evidentemente, nunca foi seguido.
A vida na nova Enterprise
Qualidade de vida é uma expressão utilizada largamente em todo o Guia. Aparentemente, este seria o valor principal que Gene Roddenberry desejava imprimir em The Next Generation. "A Enterprise foi desenhada para ser um lar" (p. 14), afirma o criador. "Lar em sentido literal", já que a nova espaçonave comporta até 1012 pessoas, e seu interior é mais confortável, mais iluminado e com plantas decorativas. De acordo com o Guia, no século 24, devido a duração das missões, os tripulantes são encorajados a levarem consigo suas famílias a bordo das naves onde estão comissionados.
"A sofisticação das espaçonaves agora inclui uma variedade de módulos para solteiros ou para famílias, vários andares de escolas e áreas para estudo, bem como grande variedade de entretenimento, esporte e outras formas de recreação, e milhares de tipos de torneios (eletrônicas e outros)." (p. 22)
Qualidade de vida |
"Os holodecks podem, com surpreendente realidade, duplicar quase todas as paisagens, da terra ou do mar, com ventos, marés, precipitações, o que for. Estes decks são muito usados, tanto para educação quanto para recreação, e são muito importantes para a prevenção, nos tripulantes e em suas famílias, da sensação de estarem levando uma vida contida e limitada." (p. 22)
Ainda dentro da perspectiva da qualidade de vida, Roddenberry escreve sobre os novos uniformes no século 24. Não perde a oportunidade de dar uma leve alfinetada nos sisudos uniformes usados nos filmes de Jornada nas Estrelas:
"Com o visual muito menos militar do que o visto nos recentes filmes de Star Trek, uma vez que a tecnologia do século 24 busca melhorar a qualidade de vida, o vestuário será confortável e atraente. (...) Quando fora de serviço, nossos personagens podem usar roupas de acordo com seus gostos pessoais e herança cultural. Assim, poderemos ver dashikis africanos, sarongs das ilhas do Pacífico, e talvez um boné de baseball do New York Yankees." (p. 19)Um paraíso na Terra
Por fim, há toda uma seção do Guia dedicada em explicar, em linhas gerais, novas tecnologias e diferenças importantes da nova Enterprise e do século 24. Agora os comunicadores fazem parte da insígnia, os capitães da Frota deixaram de liderar as equipes avançadas em planetas perigosos e a seção disco da nave pode se separar da "seção de batalha" (p. 38).
Contudo, apesar das diferenças de Star Trek: A Nova Geração em relação à série original, a visão otimista do futuro de Gene Roddenberry é a constante que amarra ambas as séries. O Grande Pássaro da Galáxia anuncia as boas novas: "a Terra no século 24 é um paraíso" (p. 35). Finalmente, a humanidade pôde resiolver todos os problemas que enfrentou por milênios e a Terra se converteu em um Éden, "com grandes e protegidas áreas selvagens, grandes parques, lindas cidades, e uma população educada e compassiva, que aprendeu a apreciar a vida como uma grande aventura" (p. 35).
O "Guia para Roteiristas e Diretores de Star Trek: The Next Generation (Writer/Director's Guide)" é um documento que carrega o pensamento vivo de Gene Roddenberry. Ao lê-lo, é como se visitássemos sua mente durante o processo de criação da nova Enterprise, dos novos personagens, das novas tecnologias e das novas sensibilidades do século 24. Embora algumas de suas sugestões não viessem a ser usadas de fato, o Guia é, realmente, uma espécie de bíblia de TNG. Com seus dogmas (nem sempre seguidos pelos fiéis) e sua oração (Estas são as viagens...), é o livro fundador da mais interessante encarnação de Jornada nas Estrelas. Era o poder do Criador se manifestando novamente.
Excelente artigo! !!!!
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirParabéns pelo artigo. É tudo o que trekker que é trekker tem obrigação de saber.
ResponderExcluirVL&P
Fico feliz que tenhas gostado. Obrigado pela leitura e comentário.
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