quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Star Trek: a lição de John Gill, por Henrique Alexandre Marques da Costa



Como professor de História e trekker, é evidente que, sempre que possível, utilizo Star Trek em minha atividade docente. Seja em exemplos diversos dados em meio as aulas, seja através de trabalhos mais específicos e elaborados como é o caso do trabalho que relato neste post. 

Tenho uma turma de 9º ano fantástica, com alunos acima da média. Esse fato por si só já facilita tremendamente o meu trabalho, por outro lado coloca um desafio ainda maior a minha frente, já que se tratam de alunos inteligentes e curiosos, que não se satisfazem com o mínimo. Querem sempre o máximo. Por isso, criei uma atividade para o conteúdo de Nazismo e 2ª Guerra Mundial envolvendo o episódio "Padrões de Força", da segunda temporada da série original. Um trabalho exigente, que busca despertar a capacidade dos alunos em interpretarem a sociedade na qual vivem, bem como problemas históricos, a partir das obras audiovisuais de ficção. Mas por que Star Trek, se existem tantas obras que tratam sobre a 2ª Guerra Mundial e o Nazismo que se passam no calor dos acontecimentos? A resposta é simples: pelos valores que Star Trek nos ensina. Além do respeito à liberdade, à diversidade, aprendemos com Star Trek a defesa intransigente da tolerância. A filosofia principal de Jornada nas Estrelas é "Infinita diversidade, em infinitas combinações". Isto é, tudo que aprendemos com a série é justamento o oposto do que o nazismo pregou e colocou em prática. Por fim, o princípio basilar da Federação: A Primeira Diretriz. Esta norma versa sobre o primeiro contato com novas civilizações. É vedada a contaminação cultural sobre sociedades que se encontrem em estágios tecnologicamente inferiores, a fim de evitar o que os europeus fizeram com as sociedades pré-colombianas, por exemplo. Pois é exatamente uma violação da Primeira Diretriz que causa os problemas que podemos acompanhar no episódio. 

 As aulas foram planejadas mais ou menos da seguinte forma:

1. Expliquei brevemente a história do antissemitismo na Europa, até atingir o estágio de "antissemitismo racista", que serviu de força motriz ao nazismo;

2. Contextualizei o ódio e a perseguição sistemática aos judeus ao longo da década de 20 e seu recrudescimento a partir da chegada dos nazistas ao poder;

3. Exibi o documentário "Arquitetura da Destruição" com o objetivo de demonstrar que o nazismo se trata (também) de uma estética, objetivando "embelezar o mundo" através do extermínio dos elementos culturais e artísticos considerados degenerados (entartete kunst), elementos estes associados diretamente aos bolcheviques e aos judeus, considerados pelos nazis "representantes étnicos da internacional comunista"; 

4. Discuti a partir deste dado, que não bastava ao nazismo eliminar a arte "bolchevique e judaica", mas era necessário eliminar fisicamente (a solução final) os criadores desta cultura, isto é, os judeus, que desta forma foram diuturnamente desumanizados pela propaganda nazista, associados perante a opinião pública através dos meios de comunicação de massa a animais, insetos e vermes. Assim surgem os campos de concentração e extermínio. 

5. Para visualizarmos estes elementos em funcionamento, propus a exibição do episódio "Padrões de Força", de Star Trek, onde há uma denúncia contundente do nazismo. Na produção em questão, de 1966 (portanto duas décadas após a liquidação do nazismo), é possível verificar a perseguição, a desumanização e as tentativas de aniquilição de um povo. Na história, nazistas e judeus; na ficção, ekoseanos e zeons. Da mesma forma, o episódio nos transmite a ideia de que qualquer tentativa de extrair algo de positivo do nazismo (o desenvolvimento econômico da Alemanha nazista, por exemplo) é uma impossibilidade. Como disse John Gill, o observador cultural da Federação que feriu a Primeira Diretriz e implantou o regime nazista no planeta Ekos, tornando-se seu fuehrer: "Até mesmo os historiadores falham em aprender história. Cometem os mesmos erros". Sem dúvida, um alerta necessário, sobretudo nestes tempos onde o fascismo volta a mostrar os dentes. Para preparar os alunos, fiz uma apresentação em power point explicando as principais características do regime nazista, destacando um dos objetivos da atividade que é desenvolver o olhar crítico sobre produções audiovisuais e mostrando personagens e filosofias de Star Trek. Complementarmente, distribuí um texto de minha autoria intitulado "Nazismo: a barbárie na civilização", construído de forma a destacar - sem relacionar diretamente - estratégias nazistas para a legitimação do holocausto presentes no episódio "Padrões de Força". 

6. Para finalizar, sugeri aos educandos que produzissem um artigo onde pudessem demonstrar que aprenderam a utilizar as produções audiovisuais como ferramentas de leitura de mundo, interpretação da realidade e problematização historiográfica. O formato do artigo vem em seções padronizadas: Título; Resumo; 1. Introdução (apresentar a intersecção dos dois temas: Nazismo e Star Trek); 2. Nazismo e perseguição aos judeus (com o objetivo de historizar-se o holocausto); 3. Realidade e ficção (com o objetivo de desenvolver a competência de leitura crítica de determinado evento histórico a partir de obra ficcional); 4. Conclusão; Referências. 

Às alunas e aos alunos (meninas dominam!) que atingiram mais do que satisfatoriamente a proposta da atividade, obtendo nota máxima, fiz o convite para que seus textos fossem publicados aqui, o que foi aceito por HenriqueEllenJúliaLuanaSara e pelo Felipe, algo que me honra demais. Como é bom quando o professor tem esse material humano para trabalhar. São meus queridos formandos da turma 92, turma a qual me sinto extremamente orgulhoso e agraciado com o privilégio de ser seu paraninfo.

O sexto e último artigo é o do Henrique: 


STAR TREK: A LIÇÃO DE JOHN GILL 



Henrique Alexandre Marques da Costa


RESUMO: Esse trabalho trata sobre como a perseguição aos judeus é representada na série Star Trek, onde no episódio em questão os protagonistas visitam um planeta que tem fortes traços da terra durante o regime nazista.

PALAVRAS-CHAVE: Star Trek, Comparação, Nazismo, Filosofia, superioridade, aprendizado. 

INTRODUÇÃO

Durante o governo de Hitler a perseguição aos Judeus já era efetuada cruelmente, onde foi feita uma legislação para tirar a cidadania e nacionalidade alemã dos judeus. Isso seguiu como uma bola de neve, piorando cada vez mais com o passar do tempo até seu ápice: A Solução Final. A série Star Trek fez um episódio para retratar esses acontecimentos de uma forma diferente, para se encaixar em seu universo intergaláctico, mas que contém o mesmo sentido e significado. 

NAZISMO E PERSEGUIÇÃO AOS JUDEUS

O Nazismo pode ser resumido em uma frase: “A busca pela pureza racial”. Frase essa que se for colocada na visão de Hitler, seria a “simples” solução para os problemas alemães. Seguindo esse raciocínio, para se atingir a pureza racial, seria necessário exterminar as impurezas, logo, um inimigo deveria ser criado para facilitar o extermínio. E é nesse momento que os judeus entram na história. A mídia foi uma potente ferramenta para espalhar a “ameaça judaica” no país, criando propagandas onde os judeus eram representados com características animais, como os grandes narizes semelhantes a de um rato. 

Isso acontecia desde 1933, período em que Hitler assumiu o poder, onde foi criada uma legislação que retirava a cidadania e nacionalidade de qualquer judeu dentro da Alemanha. Em 1938 ocorreu o evento histórico conhecido como “Noite dos Cristais” onde mais de 1000 sinagogas foram incendiadas e 7mil estabelecimentos comerciais pertencentes a judeus foram danificados ou destruídos. Os cacos de vidro das vitrines que se destroçaram e estilhaçaram no chão deram origem ao nome do evento. Estima-se que 100 judeus foram assassinados. 

Mas isso era apenas o começo, antes os judeus perdiam cidadania e nacionalidade mas caso se convertessem, seriam “perdoados”. Com o tempo essa regra foi sendo apagada, até o ápice conhecido como “Solução Final” onde foi decretado que todo judeu deveria ser exterminado. Os judeus eram levados até os campos de concentração onde eram executados, mas não era apenas isso, cientistas alemães realizavam experiências com os presos, experiências imorais que buscavam aprofundar os raciais e ideológicos nazistas, tudo isso de uma forma intensamente desumana. Mesmo sendo categorizado como uma ideologia irracional, o nazismo utilizou os mais fortes meios de influência (rádios e propaganda) para trazer o apoio do povo, até chegar ao ponto de que a tão irracional “Decisão Final” fosse apoiada pelo povo. 

REALIDADE E FICÇÃO

O episódio 21 da segunda temporada de Star Trek tem fortes referências à Alemanha Nazista, deixando bem claro na maioria do tempo mas com algumas modificações. O episódio começa com Kirk e Spock investigando o paradeiro de John Gill, historiador que foi mandando para Ekos em uma missão de observação cultural. Logo ao chegarem se deparam com soldados com uniformes idênticos aos nazistas prendendo um cidadão zeoniano, dizendo-o para não tocar em nada de Ekos e o chamando de porco (um adjetivo extremamente utilizado no episódio). 

A partir desse ponto já podemos notar que Ekos representam os nazistas e Zeon os judeus, e que mesmo as duas raças sendo humanoides e praticamente iguais, o fato de serem de planetas diferentes já é motivo suficiente para preconceito. Vale destacar uma frase dita por Isak, membro da resistência Zeon “O que farão nazistas? Depois de nos matarem, o que farão? Apontarão as armas para si mesmos?”. Nessa frase Isak descreve perfeitamente a sensação de dúvida que muitas pessoas possuem: Caso todos os judeus/Zeons fossem exterminados, o que fariam os nazistas? Já que o preconceito aos Judeus/Zeons é o motivo de sua união e força? Essa dúvida vale tanto na ficção quanto na realidade. 

Seguindo com o episódio, é revelado para os Ekosianos que John Gill (que assumiu o posto de Führer) é na verdade um humano. Isso pode vir em referência a Hitler, já que o próprio tinha descendência judaica e havia nascido na Áustria, mas com a diferença que não havia uma terceira raça envolvida. O ponto mais forte do episódio é quando é revelado o porque de Gill influenciar o planeta a se tornar uma Alemanha nazista, quebrando assim o princípio da primeira diretriz onde se proíbe interferir no avanço de uma sociedade. O episódio todo o espectador fica com a grande dúvida de “Se Gill é um historiador, por que ele iria recriar o Nazismo?”. Seguindo o raciocínio de Gill, a única forma de fazer um povo como Ekos, planeta que já estava em conflito bélico, se recuperar e prosperar novamente era recriando o partido Nazista, já que a Alemanha que estava fragmentada se recuperou tão rápido ao ponto de dominação mundial por conta do partido. Gill menciona que no começo o plano havia funcionado, mas que após um tempo seu discurso foi distorcido por Melakon, o Vice-Führer, que tinha uma visão muita parecida à de Hitler, onde todos os problemas em Ekos eram culpa dos “porcos Zeons” e que sua existência deveria ser erradicada, como proposta pela sua “Decisão Final”. 

Quando pedem para Melakon classificar Spock com sua “Especialização em genética da pureza racial”, ele diz o seguinte: “Muito difícil. Veja os olhos sinistros e as orelhas mal formadas. Definitivamente uma raça inferior.” Ou seja, na visão de Melankon/Hitler qualquer diferença em seus padrões de beleza devem ser considerados inferiores, o que vai a completa discordância à filosofia Vulcana (raça do Spock) “Infinita diversidade em infinitas combinações”, frase essa que glorifica a diversidade dos povos e seres. O episódio termina com Gill conseguindo ficar consciente o suficiente para discursar para o povo de Ekos, impedindo a Decisão Final e culpando Melakon por todo aquele caos. Após isso, Gill morre nos braços de Kirk, onde deixa sua conclusão sobre tudo que fez “Até historiadores falham em aprender com a história. Eles repetem os mesmos erros”. 

CONCLUSÃO


Star Trek retratou muito bem a forma que o partido nazista agia, com uma forma que encaixasse perfeitamente em seu universo intergaláctico. Após terminar o episódio, é possível perceber que Gill era um homem bom, que durante seu estudo de Ekos percebeu que poderia salvar aquela sociedade com seu conhecimento da história da Terra, mas de uma forma diferente, sem o sadismo do Holocausto. 

Mesmo com todo seu esforço, Gill foi traído por Melakon que pôs seus ideais nas raízes do partido, provando que mesmo que recriem o Nazismo, pela melhor que seja as intenções das pessoas, nunca vai dar certo, pois vamos corrompê-lo alguma hora. Por isso estudamos história, por isso não devemos nos lembrar de apenas nomes e datas, mas sim das causas, motivações, filosofias e consequências, para podermos evoluir como pessoas. H

História é como um livro sempre em desenvolvimento, onde tudo que der certo será lembrado e utilizado futuramente, e tudo que der errado será lembrado para que nunca mais se repita.  




Nenhum comentário:

Postar um comentário