De forma inegável a história apresenta grande objetividade, significando com isto que os acontecimentos históricos de fato ocorreram e não são apenas discursos, como argumentava Foucault, ou ainda, apenas representações do passado, por dar presença aquilo que está ausente. Porém, também é inegável que a História é uma construção que ocorre ao longo dos séculos.
O que quero dizer com isto é que a História, enquanto disciplina escolar ou acadêmica, é fruto de sucessivas interpretações das sociedades do passado por parte dos historiadores, construídas, desconstruídas e reconstruídas a partir dos novos problemas que são colocados à sociedade. Isto posto, a historiografia é sempre filha de sua época e interpreta o passado a partir de problemas do presente, possuindo as conjunturas sociais, econômicas e políticas influência sobre sua produção. As fontes e os fatos históricos, ao mesmo tempo em que constroem a história, são construídos por ela também.
Neste sentido, a título de exemplificação, podemos citar diversos usos políticos do passado. Casos onde a instrumentalização da história serve a objetivos de determinados grupos no presente. Na historiografia brasileira temos um caso clássico destas sucessivas (re)construções da história: Tiradentes e a chamada Inconfidência Mineira.
Todos sabem que, a cada 21 de abril, a memória e a história do mártir da Inconfidência (aqui já percebemos uma intencionalidade no próprio termo, pejorativo, sendo que um dos significados da palavra, segundo o dicionário Michaelis, é a "falta de lealdade ou de fidelidade, geralmente para com um governante ou o Estado.") são reverenciadas pelo país, inclusive sendo a data feriado nacional, fato que por si só já demonstra quão poderosa é a simbologia em torno de seu nome.
Contudo, a imagem de Tiradentes nem sempre foi positiva. Executado por haver participado de um movimento de caráter republicano e independentista antes mesmo do Brasil deixar de ser colônia de Portugal, a imagem do dentista mineiro do século XVIII foi execrada, por razões evidentes, ao longo de todo o período imperial. Porém, após o golpe de estado de 1889, que derrubou a monarquia e instalou o regime republicano no Brasil, o novo governo passou a explorar a imagem de Tiradentes, símbolo que caía como uma luva naquele novo contexto, por guardar muitas semelhanças com o grupo que tomara o poder, pois como eles também era militar (alferes) e com pendores republicanos, oriundos do seu contato com o pensamento iluminista e com a Revolução Americana. Em suma, um herói perfeito para legitimar o novo regime, que até mesmo passa a ser representado de maneira semelhante à imagem clássica de Cristo no imaginário ocidental: barba e cabelos longos.
Já no caso da ditadura civil-militar vigente no país entre 1964 e 1985, existe ainda um outro componente que mobiliza disputas, a saber, a criação de sentidos para aquele acontecimento histórico que impactou profundamente a sociedade brasileira.
Os intérpretes situados no espectro político da direita, em geral, argumentam que o processo de derrubada do presidente João Goulart foi uma revolução (ou contrarrevolução), com o objetivo de retomar o país das mãos dos "comunistas", que estariam prestes a tomar o poder, embora não exista nenhuma fonte que comprove este fato. Para a esquerda, que de fato embasa sua interpretação em documentos e testemunhos da época que demonstram não haver uma revolução comunista em curso, o que vem ao encontro da historiografia científica e mais imparcial, 1964 tratou-se de um golpe, que encerrou a democracia no país por 21 anos, após a queda do presidente legítimo João Goulart.
Estes são alguns exemplos, dentre muitos outros ("Descobrimento" do Brasil, heroísmo dos bandeirantes, "Revolução" Farroupilha, "Revolução" de 1930, “Revolução” de 1932, etc.), que demonstram como a história se trata de uma construção intelectual, que em muitos casos visa a criação de sentidos que venham atender objetivos políticos imediatos dos mais diversos grupos. Aliás, tanto a História quanto a Geografia, no momento em que foram alçadas a disciplinas escolares e acadêmicas, apenas há dois séculos, surgiram como instrumentos do nacionalismo emergente com a função de despertar nos cidadãos sentimentos patrióticos.
Evidentemente, apesar da neutralidade ser impossível de ser atingida, todo historiador realmente comprometido com a ciência histórica, deve se posicionar de maneira mais imparcial possível sobre seus objetos de estudo. Por outro lado, é indiscutível que o historiador também cumpre uma função social, tendo por dever denunciar e combater toda forma de opressão e totalitarismo, seja de direita ou de esquerda.
Nos três primeiros episódios da segunda temporada de Deep Space Nine ("The Homecoming" [A Volta para Casa], "The Circle" [O Círculo] e "The Siege" [O Cerco]) somos apresentados a personagens e acontecimentos que remetem ao que discutimos acima. Como se sabe, Bajor foi dominada por 60 anos pelos cardassianos, que deixaram um legado de tortura, morte de destruição entre os bajorianos. Contudo, ao longo de toda a ocupação, movimentos de resistência foram organizados em Bajor, combatendo de forma aguerrida o invasor.
Nos episódios trazidos à baila, são mostrados os eventos ocorridos após a descoberta de que Li Nalas, um dos grandes heróis da resistência bajoriana, está vivo. Após retornar para Bajor, passa a haver a exploração de sua imagem com objetivos políticos, ao considerar-se importante que Nalas se torne um símbolo em prol da união do povo bajoriano, que, no caos pós-dominação, encontra-se dividido em diversas facções que lutam pelo poder.
Uma destas facções, denominada "O Círculo", é liderada pelo ministro Jaro Essa, de viés radical e xenofóbico (Bajor para os bajorianos), tendo como objetivos derrubar o governo provisório instalado após o término da ocupação cardassiana, e a reboque, expulsar a Federação dos Planetas Unidos do sistema Bajoriano. No entanto, sem que seus militantes saibam, o grupo é abastecido de armas pelos inimigos cardassianos, que em uma estratégia sofisticada, procuram derrubar o governo bajoriano através dos próprios bajorianos, fazendo com que após a queda do regime a Federação retire-se de Bajor, abrindo assim o caminho para a reconquista cardassiana do planeta.
A partir das investigações da tripulação da estação, finalmente os rebeldes do Círculo são confrontados com a verdade sobre o plano de Cardássia para retomar o controle sobre Bajor, no qual foram habilmente manipulados para sua realização. Não aceitando deixar para trás a derrubada do governo provisório, um dos militares radicais do Círculo, coronel Day Kannu, tenta assassinar Sisko, atingindo acidentalmente Li Nalas, que se colocou em frente ao disparo para proteger o comandante.
Antes mesmo de sua morte, Li Nalas já era um mito histórico no sentido literal: uma representação idealizada de um determinado ser que atende anseios de uma sociedade. Sua história, ou a memória de seus atos durante a resistência, não se ancoram na realidade. Tido como um grande herói por ter matado um líder cardassiano em uma luta brutal, na verdade Nalas atirou no inimigo quando este se encontrava totalmente vulnerável, trajando apenas roupas de baixo, ao sair do banho. Por mais que Nalas tenha tentado evitar a mitificação de seu ato e de seu nome, perdeu o controle da situação e a história, de caráter heroico, ganhou Bajor, tornando-se verdade, e servindo como sentido legitimador e estimulador para a resistência.
A consolidação do mito do herói Nalas vem com seu desaparecimento glorioso. Li Nalas simboliza a luta por liberdade de Bajor, mesmo que seus atos não tenham sido espetaculares. No entanto, é do interesse tanto do Governo Provisório quanto da Federação que Nalas seja cultuado, mesmo que isso sacrifique a "verdade". Sua figura será importante para a estabilidade de Bajor. Sua memória deve atender aos objetivos políticos desta aliança.
Além disso, como nos lembra Rüsen, a narrativa histórica tem como uma de suas funções orientar a vida prática no tempo. Dentro dos seus quatro tipos possíveis, segundo o pensador alemão, assume relevância para o caso de construção do mito histórico de Li Nalas a narrativa histórica exemplar. Nas narrativas históricas exemplares são lembrados os acontecimentos que estabelecem regras gerais de conduta, de forma a criar uma identidade. Li Nalas, segundo a narrativa em torno de si, agiu exemplarmente, no contexto de luta contra o invasor cardassiano, criando um senso de identidade entre os bajorianos que afirma que a única postura possível na dominação é lutar contra o dominador. Portanto, nesse caso específico, a velha máxima historia magistra vitae (história mestra da vida) tem seu sentido renovado, sobretudo no diálogo final do episódio triplo entre Sisko e O’Brien.
Ao conhecer o indivíduo Li Nalas, O'Brien percebeu que este se tratava de um homem comum, que não condizia com o mito Li Nalas. Como resposta, Sisko afirma:
"Li Nalas era o herói da resistência bajoriana. Ele praticou excepcionais atos de coragem pelo seu povo e morreu pela liberdade dele. Será assim que os livros de história de Bajor serão escritos e será assim que me lembrarei dele, quando alguém perguntar"
Assim nasce um mito, parido pela mitificação e pelos usos políticos do passado.
The Homecoming (Episódio 1 – Temporada 2)
Roteiro: Ira Steven Behr
Direção: Winrich Kolbe
Exibido pela primeira vez em 26/09/1993
The Circle (Episódio 2 – Temporada 2)
Roteiro: Peter Allan Fields
Direção: Corey Allen
Exibido pela primeira vez em 03/10/1993
The Siege (Episódio 3 – Temporada 2)
Roteiro: Michael Piller
Direção: Winrich Kolbe
Exibido pela primeira vez em 10/10/1993
Nenhum comentário:
Postar um comentário