Atualmente, um dos grandes problemas discutidos na sociedade diz respeito à questão da acessibilidade. Durante muito tempo, como se pode observar em construções antigas, por exemplo, não houve preocupação com o acesso das pessoas com deficiência a cinemas, teatros, igrejas, escolas, empresas etc. Portanto, ainda é muito recente - e problemática - a criação de meios que possibilitem a todos o acesso ao trabalho, ao estudo, ao transporte e ao lazer.
É uma obrigação do Estado Democrático de Direito, além do caráter de cidadania plena que as ações de acessibilidade promovem, garantir o direito humano de ir e vir, independentemente das dificuldades de locomoção que a pessoa possa ter. E não somente do Estado, mas de empresas, escolas e cidadãos, afinal, como entes sociais que são, todos possuem suas responsabilidades perante à sociedade na qual se incluem, ou seja: contribuir com o coletivo, através da inclusão dos excluídos.
Está na Constituição Federal, em seu artigo terceiro: "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.".
A palavra central na questão da acessibilidade para pessoas com deficiência é inclusão. Por este conceito, podemos entender 1) a aceitação das diferenças de cada um; 2) a valorização de cada ser humano, a partir de suas idiossincrasias; 3) o direito de todos ao convívio social. Desta forma, a inclusão contribui para a construção de uma sociedade mais justa, onde todos possam acessar os mesmos ambientes, sem empecilhos físicos e discriminações. Por outro lado, não pode-se exigir que a pessoa com deficiência adapte-se a um mundo projetado para pessoas não-deficientes, até mesmo porque seria impossível na maior parte dos casos. A perspectiva deve ser a inversa: é imperativo que governos e sociedade civil em geral se esforcem para criar as condições necessárias (isto é, a adaptação de meios de transporte, construção de rampas de acesso e banheiros adaptados, dentre outras ações) para que a inclusão se torne de fato uma realidade.
No Brasil, estima-se que quase 15% da população possua alguma necessidade especial. Devido a nossa população de mais de 200 milhões de habitantes, o percentual corresponde à população de diversos países. Em vista disso, políticas públicas se fazem necessárias, de forma a promover a inclusão destes 30 milhões de brasileiros com deficiência, sobretudo no mundo do trabalho. Assim, o mercado (que, por seu caráter excludente, tendencialmente vê com preconceito as pessoas com deficiência ao considerá-las com menor capacidade de trabalho que pessoas sem deficiência, logo, com menos capacidade de gerar lucros), precisa ser regulado, fato que ocorre desde 1991 com a chamada Lei de Cotas. De acordo com a lei, empresas com mais de 100 funcionários precisam formar entre 2 a 5% dos seus quadros com pessoas deficientes. No serviço público o percentual é ainda maior, 20% dos nomeados. São ações afirmativas, que servem para corrigir injustiças históricas que se perpetuariam caso não fossem combatidas na forma da lei e que ajudam a construir maior igualdade no acesso ao mercado de trabalho.
No episódio 6 da 2ª temporada de Deep Space Nine (Melora), somos apresentados a alferes Melora Pazler, natural do planeta Elaysian, conhecido por sua baixíssima gravidade. Desta forma, os elaysianos enfrentam dificuldades de locomoção nos ambientes de gravidade mais alta, como na Terra e nas instalações (naves e estações espaciais) da Federação. Portanto, o episódio apresenta uma bela metáfora a respeito dos problemas de acessibilidade e inclusão de deficientes no mundo atual.
Ao chegar na estação, Melora é recebida por Dax e pelo Dr. Bashir , que lhe prepara uma cadeira de rodas, com o objetivo de facilitar seu deslocamento na Deep Space Nine. Contudo, a cadeira é diferente da que a alferes está acostumada, e Dax lhe oferece ajuda, ao que Melora prontamente rebate: "Não, eu vou me adaptar". Aqui já fica evidente sua postura defensiva, frente a um mundo que frequentemente a enxerga como alguém doente. Melora chega à estação com o objetivo de realizar uma missão científica no Quadrante Gama, a qual Sisko ordena que Dax a acompanhe. Melora encara a decisão de Sisko como um sinal de que o comandante não a considera plenamente apta em realizar a missão, devido sua "deficiência". Começamos aqui a exercer a empatia em relação a Melora, já que passamos (os que não possuem deficiência) a ver o mundo pelos olhos de uma pessoa com deficiência, percebendo assim com mais clareza os momentos de preconceito pelos quais elas passam. Contudo, Dax explica que, no caso, Sisko não autorizaria nenhum oficial da Frota se dirigir ao Quadrante Gama sozinho um dia após sua chegada à estação.
Sobre sua reação ao comportamento da tripulação em relação a ela, Melora diz: "Sinto muito se pareço excessivamente sensível. Mas estou acostumada a ser excluída do problema 'Melora'. A verdade é que não há problema 'Melora'. Até as pessoas criarem um.". Ou seja, ciente de sua própria capacidade, Melora não aceita que a julguem a priori como uma pessoa que precisa de ajuda todo tempo. Ela sabe que, embora apresente no contexto de gravidade "normal" algumas dificuldades, isto não impede que ela execute plenamente suas obrigações. Assim, em sua visão, os outros tendem a criar um problema que não existe, pelo simples fato dela ser diferente.
De fato, quantas vezes não vemos isso ocorrer diante dos nosso próprios olhos, ou então, quando nós mesmos acabamos mistificando a situação de pessoas deficientes? A reflexão que o episódio propõe sobre nosso próprio comportamento em relação a pessoas com deficiência é muito importante. Em primeiro lugar, por mostrar como possuímos julgamentos a priori, com base em modelos mentais que carregamos até então; em segundo lugar: este tipo de abordagem faz com que aqueles que já costumam ser excluídos por conta de sua deficiência sintam-se ainda mais desiguais sob o olhar "piedoso" dos outros.
Por fim, Bashir tenta fazer com que Melora se adapte de forma final e irreversível à gravidade "normal". Melora fica dividida, pois sabe que se decidir levar adiante o procedimento nunca mais poderá viver normalmente em seu planeta natal. Bashir representa aqui o senso comum, que vê as pessoas com deficiência como incapazes de levar uma vida plena. Melora, evidentemente, representa a pessoa que, sempre vista como desigual, enxerga uma chance de igualdade. No entanto, ela tem muito a perder com esta transformação radical. Finalmente, embora o procedimento seja promissor, Melora acaba por se convencer de que deve continuar exatamente como é. Acredita que assim manteria sua identidade como elaysiana.
Como todo trekker sabe, Jornada nas Estrelas sempre nos brindou com reflexões sobre o mundo no qual vivemos. Melora é um episódio que não foge a regra, tratando de tema importante, que diz respeito à inclusão de um grande número de pessoas. Como Melora diz a Sisko: “Tente sentar na cadeira, comandante. Ninguém pode entender até se sentar na cadeira.”. É preciso empatia. Assim, Melora é uma história que se enquadra perfeitamente em dois pilares de Star Trek: a igualdade e o respeito à diversidade.
Melora (Episódio 6 – Temporada 2)
Roteiro: Evan Carlos Somers, Steven Baum, Michael Piller e James Crocker
Direção: Winrich Kolbe
Exibido pela primeira vez em 31/10/1993
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