sábado, 16 de dezembro de 2023

Entrevista com o Professor David K. Seitz, autor de "A Different 'Trek': Radical Geographies of Star Trek: Deep Space Nine"

 


Os fãs de Star Trek: DS9 já conhecem a variedade e riqueza dos temas sociais, políticos e culturais que a série apresenta, fato pelo qual DS9 é apontada, muitas vezes, como a mais madura e profunda das séries de Star Trek. Esta percepção ganha força quando nos deparamos com obras como A Different ‘Trek’: Radical Geographies of Deep Space Nine (2023), de autoria do professor David K. Seitz, na qual DS9 é analisada por meio da geografia cultural, dos estudos afrodescendentes e dos estudos feministas e queer. A Different 'Trek' é a primeira obra acadêmica dedicada a uma interpretação crítica da construção alegórica do mundo em DS9.

David K. Seitz é um geógrafo crítico do multiculturalismo liberal com interesses recorrentes em gentrificação, imigração, formação de comunidades queer, cultura popular e estratégias socialista. Além de A Different ‘Trek’, ele também é autor de A House of Prayer for All People: Contesting Citizenship in a Queer Church (2017). Adicionalmente ao seu trabalho no departamento de Humanidades, Ciências Sociais e Artes na Harvey Mudd College, o Prof. Seitz é professor afiliado no Departamento de Estudos Culturais da Claremont Graduate University e professor principal no Programa de Estudos Americanos nos Claremont Colleges. Em 2023, ele integrou o coletivo editorial da revista acadêmica ACME: An International Journal for Critical Geographies.

Fascinado pela leitura de A Different ‘Trek’, procurei o professor Seitz, que, muito generosamente, aceitou o meu convite para conversarmos sobre algumas das suas ideias a respeito de DS9 e como a série se encaixa em seus estudos acadêmicos.

Professor Seitz, é um prazer ter acesso ao seu trabalho, que serve como uma grande inspiração para os pesquisadores de Star Trek. Como Star Trek se tornou um aspecto significativo de sua vida e um ponto focal para sua pesquisa?

É um prazer participar desta entrevista! Lamento não poder falar português porque o seu trabalho parece fantástico, mas estou agradecido pelo seu blog, que é um site tão enriquecedor para a troca de interpretações de Trek, ser bilíngue.

Cresci na segunda era de Trek, e assistir TNG com meu pai e Voyager com minha irmã foram partes importantes da minha infância. Eu meio que perdi o interesse depois que Voyager terminou - Enterprise me pareceu reacionária, pelo menos na época - embora eu tenha acompanhado os filmes.

Depois, passei o verão após a universidade lendo o livro "Terrorist Assemblages" de Jasbir Puar sobre a política cultural da Guerra Global contra o Terror e assistindo DS9 do início ao fim. Fiquei totalmente impressionado com ambos. Durante a universidade, acho que via Star Trek como um apego um tanto embaraçoso, embora tivesse um professor, o antropólogo queer Scott Morgensen, que sempre insistia em Trek como um texto ricamente contraditório. Mas a sofisticação política do DS9 realmente me impressionou.

Na minha pós-graduação em Toronto revi DS9 - Star Trek é ainda mais popular no Canadá do que nos Estados Unidos - com meu querido amigo, o estilista Mic. Carter, que ficou totalmente fascinado pelos temas afrofuturistas, subtextos queer e guarda-roupas fabulosos do programa como recursos para inspiração estética. No final do meu tempo em Toronto, geógrafos como Mark Rhodes e Fiona Davidson começaram a promover mais discussões sobre Star Trek, e escrevi alguns artigos sobre a política emocional de DS9. Meu amigo e mentor, o ativista queer Tim McCaskell, disse que eu tinha um livro nas mãos. Mas na época, pensei que ele estivesse sendo apenas gentil.

Só comecei a recorrer a Star Trek como ferramenta de ensino, ou a pensar em um livro sobre DS9, quando consegui um emprego no Harvey Mudd College, onde trabalho agora. Atuo em um amplo departamento de artes liberais em uma escola de ciência e engenharia que oferece aos professores muita flexibilidade e autonomia em termos de oferta de cursos. Desde 2018, ofereço um seminário para estudantes do primeiro ano sobre a política cultural de Star Trek - um curso que tem funcionado como um laboratório para mim enquanto desenvolvo minhas próprias ideias. O curso atrai, na mesma proporção, estudantes que são fãs de Star Trek e estudantes interessados em teoria crítica. Sempre discutimos sobre raça, classe, gênero, sexualidade e império, mas aprendi muito com os interesses que os alunos trazem para esse curso, especialmente sobre questões de deficiência e neurodiversidade.

Em certo ponto do seu livro, você menciona que o Domínio pode ser entendido como um "gêmeo mal" da Federação. As diferenças são bastante claras, mas quais são as semelhanças mais problemáticas entre as duas organizações? A Federação é colonialista?

Os antagonistas de Star Trek são frequentemente retratados como homogêneos ou agressivamente homogeneizadores. Com os Klingons, os Romulanos e os Cardassianos, existem divisões políticas e econômicas internas, mas presume-se que compartilhem alguma essência cultural. E eles podem ser bastante supremacistas em relação a essas diferenças. Quando Cardássia ocupa Bajor, independentemente dos eufemismos que Gul Dukat possa usar, você sabe quem está no controle. Os Borgs são compostos por muitos povos diferentes, mas só se interessam por essas diferenças na medida em que aumentam suas capacidades e habilidades existentes. Os Borgs reprimem simultaneamente essas diferenças, apenas para que elas ressurjam no contexto de movimentos de resistência (como Unimatrix Zero) ou formações ex-Borgs. Assim, apesar das diferenças entre Klingons, Romulanos, Cardassianos e Borgs, a Federação pode se apresentar como tolerante, cosmopolita e igualitária em contraste com todas essas sociedades.

O Domínio complica a autopercepção benevolente da Federação. O que distingue o Domínio desses outros antagonistas é que ele mantém a diferença, não com a promessa de igualdade, mas como uma espécie de ordem imperial explicitamente hierárquica. Ele não busca eliminar os povos cujos mundos ocupa ou colonizar seus territórios, mas lucrar com eles e controlá-los. O Domínio é um contraste menos confortável para a Federação do que os outros antagonistas mencionados, porque, assim como a Federação, é cosmopolita.

Pode ser objetado aqui que a Federação não é coerciva, enquanto o Domínio é. Mas, como Fiona Davidson e outros argumentaram, a Federação está tão convencida da superioridade de seu liberalismo que não consegue deixar de se ver como um telos universal, e nem sempre é boa em aceitar um "não" como resposta. Pense aqui em "The Gift" em Voyager - no qual Janeway impõe, sem o consentimento de Seven of Nine, o que Mimi Nguyen chama adequadamente e ironicamente de "presente da liberdade". Pense, também, na natureza axiomática da entrada de Bajor na Federação, que Sisko, Kira e os Profetas contestam em vários momentos em DS9. Por mais que ela respeite Sisko e mesmo que, por um tempo, ela use o uniforme da Federação para sua própria proteção, Kira enxerga através desse dado considerado como certo desde o início de DS9.

Você argumenta que DS9 é um local pós-colonial por excelência, redefinido por Bajor e pela Federação no período após a ocupação. Podemos relacionar essa situação a contextos geográficos e históricos do mundo real?

Na literatura acadêmica em inglês existente sobre DS9 que conheço, a única interpretação sustentada de Bajor pós-Ocupação é como uma alegoria para a Europa no período pós-Segunda Guerra Mundial. Essas leituras se voltam para as experiências dos judeus europeus, sobreviventes do Holocausto, como o principal referente para a experiência Bajoriana. Essas são leituras importantes, comoventes e eminenteente sustentáveis. A influência de textos que abordam o trauma histórico do Holocausto, como "Eichmann em Jerusalém" de Hannah Arendt e "O Homem na Cabine de Vidro" de Robert Shaw, em episódios de DS9 como "Duet", é palpável e bem documentada.

Ao mesmo tempo, é uma leitura incompleta, em parte porque é eurocêntrica. Como Joanne Sharp aponta, os anos 1990 são um período em que a cultura popular dos EUA está desorientada, procurando novos inimigos cinematográficos e geopolíticos na ausência de um grande adversário soviético. Retomadas da Segunda Guerra Mundial - particularmente aquelas que enaltecem os EUA como o único salvador da Europa - tornaram-se muito populares nessa época, sem se importar com as baixas soviéticas, sem se importar com os judeus requerentes de asilo que os EUA se recusaram a ajudar, sem se importar com o que aconteceu em Dresden, sem mencionar Hiroshima ou Nagasaki.

Além disso, ler Bajor exclusivamente como uma alegoria do Holocausto não esgota as experiências históricas que informaram o desenvolvimento das tramas Bajorianas. Os escritores foram muito claros sobre a inspiração que tiraram de uma ampla gama de histórias além e dentro da Europa, e Michael Piller foi particularmente explícito sobre as desapropriações dos povos indígenas nas Américas e dos palestinos. Michelle Forbes, a atriz que apresentou os Bajorianos ao mundo, tem sido consistentemente franca e perspicaz em sua leitura de Bajor como a Palestina e em sua solidariedade com os palestinos. As dimensões territoriais dos desígnios cardassianos em Bajor certamente ressoam com lebensraum, mas também ressoam com colonizações de estilo europeu em todo o mundo, como apontou Aimé Césaire, Hitler fez à Europa o que a Europa havia feito ao resto do mundo. Mas a visão de Césaire ressoa porque os dados já estão no arquivo Trek. Eu simplesmente busquei elevar e desenvolver de maneira sustentada o que Piller, Forbes e outros já haviam dito.

Ao longo da história, muitos povos se organizaram em prol de sua libertação com base em suas crenças. As lutas dos povos indígenas, africanos, poloneses, irlandeses e palestinos servem como exemplos significativos. Como a luta Bajoriana pela liberdade reflete com precisão e imprecisão as lutas históricas?

Os Bajorianos nos oferecem uma imagem simpática de um povo colonizado lutando pela liberdade e recorrendo explicitamente à religião como recurso de autoridade moral e força para perseverar nessa luta. O fato de que a grande maioria dos Bajorianos em TNG e Deep Space 9 foi retratada por atores de pele branca é uma divergência óbvia e infeliz do que a maioria, embora certamente não toda, da luta anticolonial em nosso próprio planeta parece. No entanto, dados o conteúdo e o tom afetivo da trama, ainda é difícil imaginar Hollywood contando uma história assim na era da Guerra Global contra o Terror, muito menos no clima atual de esforços para reprimir a escala sem precedentes da solidariedade global com a Palestina. Quando confrontar a história se torna difícil ou impossível, Dina Georgis nos ensina que é na "ficção [que] é concedido espaço para lamentar a história". Podemos ainda nos voltar para Bajor e para histórias como a de Kira, não apenas por precisão histórica ou pelo que essas histórias "dizem", mas pelo que elas "realizam psiquicamente". Kira é simultaneamente uma combatente anticolonial pela liberdade e uma figura generosa e esperançosa de possibilidade coalizional, e seu exemplo permanece disponível para nós como um recurso psíquico nestes tempos difíceis.

É intrigante que você mencione o "corpo duplicado" de Sisko. De fato, essa característica o torna muito diferente dos capitães da Frota Estelar aos quais estamos acostumados. A Federação tem algo a aprender com a dualidade incorporada por Sisko?

Desde o início de DS9, muito antes de se sentir confortável com seu papel como Emissário, a conexão de Sisko com a história da diáspora africana, fundamentada na própria consciência política de Avery Brooks, significa que ele não pode desconsiderar a religião como um apego necessariamente retrógrado, porque ele sabe que ela foi um recurso para a luta pela libertação, bem como uma ferramenta de opressão. Seu rapport com a Kai Opaka é tão imediato e sincero, algo que Brooks já destacou em entrevistas. Portanto, Sisko já está em desacordo com a perspectiva secular padrão da Federação, e, é claro, a discrepância entre seu papel como oficial da Frota Estelar e o de Emissário dos Profetas cresce à medida que o programa avança. Ao mesmo tempo, ele também percebe rapidamente que a Kai Winn é uma demagoga odiosa.

O que a Federação pode aprender com isso? Talvez que tanto a religião quanto o secularismo são fontes de perigo quando se tornam fetichizados e insistidos de maneira rígida e descontextualizada. O psicanalista Robert Stoller observou que "um fetiche é um objeto se passando por uma história". Existem muitas histórias contextualmente específicas de secularismo como uma saída libertadora da opressão teocraticamente consagrada ou da corrupção flagrante das instituições religiosas. E existem muitas histórias contextualmente específicas de religião como um recurso para a libertação - de fato, como a única coisa que mantém historicamente subalternos diante de sistemas de desumanização que parecem completamente intratáveis por qualquer cálculo "racional". No entanto, ambos podem se tornar problemáticos quando fetichizados - como nos ataques "neoateístas" aos muçulmanos que cinicamente instrumentalizam a liberdade de gênero e sexualidade a serviço do racismo, ou nos séculos de cumplicidade da igreja cristã na despossessão e abuso de negros, indígenas, mulheres, queer, trabalhadores e do meio ambiente.

Então, como distinguir invocações "boas" de religião ou secularismo de invocações "ruins"? Sisko se baseia em sua fundamentação nas histórias humanas da diáspora negra, em sua experiência de vida, em sua intuição e na força de seus relacionamentos com os bajorianos e com os Profetas para discernir a diferença. Se esse tipo de discernimento aberto causa desconforto para alguns fãs de Star Trek, eu os lembraria de que Gene Roddenberry incentivou os secularistas a terem senso de humor sobre seu secularismo quando recebeu o prêmio da American Humanist Association em 1991.

Quais aspectos específicos de Star Trek exigem uma exploração acadêmica mais aprofundada?

Adoraria que alguém realizasse uma leitura aprofundada do Trek dos anos 1990 sob a perspectiva dos conflitos contemporâneos na região da Iugoslávia. Darryl Li escreveu um livro fascinante sobre os tipos de solidariedade transnacional que surgiram na defesa dos muçulmanos bósnios contra a limpeza étnica, e as formas como essas solidariedades se basearam em formas anteriores de solidariedade cosmopolita associadas ao Movimento Não Alinhado. O trabalho de Li torna possível começar a enxergar as maneiras como Bajor e os Maquis podem ser produtivamente lidos como alegorias dessas solidariedades. Recebi várias perguntas inteligentes sobre isso na turnê do livro "A Different 'Trek'", mas está além da minha expertise. Fiona Davidson, Jason Dittmer e outros começaram a sugerir esses paralelos, mas nunca vi essa linha de investigação sustentada na academia, assim como as referências a Bajor como uma alegoria para a Palestina haviam sido amplamente sugeridas, mas nunca desenvolvidas por acadêmicos.

Também tenho curiosidade em aprender mais sobre as histórias de recepção de Star Trek fora dos EUA, Canadá, Reino Unido e Alemanha, o que é uma das muitas razões pelas quais estou tão empolgado em conhecer o seu trabalho como blogueiro, historiador e analista cultural.

E por último, mas não menos importante, qual é o correto: Profetas do Templo Celestial ou Alienígenas do Buraco de Minhoca?

Não tenho problemas em dizer Profetas do Templo Celestial. :) Então, para encerrar esta entrevista, agradeço dizendo: "Ande com os Profetas!"

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