Recentemente,
a estátua do bandeirante Borba Gato, situada em São Paulo, foi alvo de uma
manifestação na qual um grupo a incendiou. Esse ato corajoso e revolucionário segue
uma tendência mundial em que organizações populares buscam destruir símbolos de
um passado colonialista, escravocrata e genocida, passado este que é memorado e
homenageado na forma de estátuas e monumentos que representam alguns dos seus
agentes.
Foi
assim com diversas estátuas de Cristóvão Colombo nos Estados Unidos e na
Colômbia, e também com a estátua do traficante de escravos do século XVII
Edward Colston, na Inglaterra. O entendimento dos manifestantes que promovem
estes atos é de que toda estátua é uma homenagem. Logo, se uma estátua foi
erigida representando um invasor que deflagrou o genocídio dos índios das
Américas ou então um agente ativo do holocausto africano, parece evidente que
estas estátuas, mais do que prestarem tributo a estes homens e seus atos,
celebram as ideias que estiveram por trás deles.
Representar
é tornar o ausente presente. Quando uma estátua é levantada ela dá corpo aquilo
que já feneceu. Uma estátua de Cristóvão Colombo materializa a invasão das
Américas e o os subsequentes genocídio indígena/escravidão africana. A estátua
de Colston traz de volta à vida todo o sofrimento imposto, por meio das armas e
da ideologia, aos povos da África durante séculos. Em cada uma destas estátua,
o colonialismo, pai do racismo, da miséria e da submissão de uma infinidade de
povos na atualidade, é glorificado e revivido. A estátua de Borba Gato
enquadra-se perfeitamente nesse cenário.
A questão central aqui é compreendermos por
qual razão ainda hoje é possível que traficantes de escravos, genocidas,
ditadores e outros bandidos sejam homenageados. As estátuas, monumentos e nomes
de ruas que os representam não brotaram do nada. Muito pelo contrário, foram
fruto da ação concreta de homens e mulheres concretos.
Na
cidade de Porto Alegre, por exemplo, há uma avenida chamada Castelo Branco, em
homenagem a um dos ditadores da Ditadura Civil-Militar de 1964. Por um breve
período, o povo conseguiu renomeá-la para Avenida da Legalidade, em rememoração
ao movimento liderado pelo então governador do Rio Grande do Sul Leonel
Brizola, em 1961, garantindo a posse de João Goulart, ameaçada pelos militares.
Sairia a homenagem a um ditador e entraria a celebração da democracia. Entretanto,
as forças políticas retrógradas do estado, apegadas ao passado ditatorial e
sabedoras da importância dos símbolos para a política e para a ideologia,
conseguiram regredir e rebatizar a avenida com o velho nome.
Algo
assim acontece agora em relação ao incêndio na estátua de Borba Gato. Há um
verdadeiro frenesi por parte da direita e da extrema-direita contra os
manifestantes, tachados de terroristas. Houve a prisão a jato de três pessoas,
sendo que uma delas nem estava presente no ato, presa apenas por ser a
companheira de Paulo Galo, um líder em ascensão pelos direitos dos entregadores
de aplicativo. Todos sabem como o trabalho dessa categoria é precário. Galo
luta para que direitos mínimos sejam garantidos, fato que certamente despertou
a fúria dos conservadores e das classes dominantes. Sua mulher, Géssica, foi
presa como forma de intimidar ainda mais o trabalhador insolente.
Mas
quem foi Borba Gato, o homenageado pela estátua incendiada?
Borba
Gato foi um bandeirante, isto é, um daqueles mercenários do século XVII que
alargaram as fronteiras do Brasil. É claro que isso não aconteceu de maneira
bela e edificante, muito pelo contrário, os bandeirantes escravizaram,
estupraram, mataram e torturaram homens e mulheres indígenas por onde passaram.
Os escravos indígenas da cidade de São Paulo foram quase que totalmente
capturados por bandeirantes. Borba Gato ainda é conhecido por ter assassinado
um português, obtendo o perdão da Coroa de Portugal quando revelou a
localização de minas de ouro no território brasileiro.
Em
suma, Borba Gato foi um criminoso, um chefe de bando, que da noite para o dia,
com o perdão da Coroa Portuguesa para o homicídio que cometera, se tornou um
fidalgo coberto de honrarias. Pois não é que a história se repete no Brasil com
estes tantos bandidos cobertos de honrarias que temos hoje no poder?
Mas
a questão fundamental que temos que fazer é: por que ainda está de pé a estátua
que homenageia não só o colonialismo, o genocídio e a escravidão, mas também na
esfera individual um marginal de quinta categoria? A resposta pode ser dupla.
Em
primeiro lugar, é preciso reconhecer que a historiografia oficial brasileira do
período republicano buscou símbolos que constituíssem o Brasil como nação.
Pedro Álvares Cabral, Tiradentes. Duque de Caxias e os bandeirantes foram
moldados pelos historiadores alinhados ao poder como os nossos grandes heróis.
Indivíduos que deram a vida em prol da construção do Brasil como um país
soberano, diferenciado e destinado ao sucesso. Assim, tornam-se completamente
compreensíveis as razões para a existência de uma estátua que homenageia um
bandeirante: querem fazer crer que Borba Gato foi um homem que ajudou a formar
o Brasil como o conhecemos. Ele contrabandeou, matou, escravizou e estuprou? Um
mero detalhe frente à tarefa histórica que teria realizado.
Afinal, o nacionalismo é o instrumento dos
poderosos para a morte da luta de classes. Somos todos iguais, eles dizem, brasileiros,
sob a mesma bandeira, o mesmo hino e os mesmos heróis. Não interessa se alguns
entre nós são bilionários e outros morrem de fome e de frio. Somos brasileiros
e não desistimos nunca. Viva Borba Gato!
A
segunda resposta diz respeito ao Estado de São Paulo propriamente dito. Os
paulistas sempre se consideraram a locomotiva do Brasil. Na Era Vargas,
acreditando terem perdido o protagonismo nacional, se insurgiram contra Getúlio,
embora tenham sido, ao fim e ao cabo, derrotados militarmente por este. Os
bandeirantes foram selecionados a dedo pela historiografia oficial de São Paulo
como o símbolo do empreendedorismo paulista e como os desbravadores que
alargaram o território nacional, sendo São Paulo o ponto de partida dessa
verdadeira epopeia nacionalista. É desse modo que uma monstruosidade horrenda
de dez metros e vinte toneladas como a estátua de Borba Gato ainda permanece de
pé, enfeiando São Paulo. Mas não mais sem contestação nos dias de hoje.
Muitos
nos setores ditos progressistas reclamaram do ato. Dizem que não se deve
“vandalizar” estátuas, que estas fazem parte do patrimônio histórico nacional.
Alguns fizeram analogias com palácios que foram tomados por revolucionários e que
acabaram ressignificados. A velha tara dos liberais por revolucionários dóceis.
Mas vejamos bem. É possível ressignificar uma estátua?
Um
palácio usado por um autocrata sem dúvida alguma poderá ser ressignificado,
pois um prédio tem funcionalidade (o Kremlin, por exemplo). Já uma estátua,
como dito, é e sempre será uma homenagem. Existem estátuas de Hitler na
Alemanha? Será que ao fim da Segunda Guerra Mundial alguns alemães consideraram
possível ressignificar uma estátua de Hitler e mantê-la de pé como lembrança de
um período que não deve se repetir? É claro que não. Estátuas tornam visível
aquilo que já não é mais visível e, nessa operação, tornam redivivos e objetos
de culto os assassinos do passado e as suas ideias.
Em
Star Trek: Deep Space Nine, os usos políticos da memória e da história são um
tema bastante presente. Isso tem origem no argumento inicial da série: a
Federação – por meio da Frota Estelar – participa ativamente do processo de
desocupação do planeta Bajor que havia sido invadido e dominado pelos
cardassianos.
Em
Bajor, encontramos uma sociedade espiritualizada que tem na religião um
importante catalisador da identidade daquele povo. Porém, ao longo de muitas
décadas, os bajorianos viveram sob o tacão dos violentos e brutais
cardassianos, oriundos de uma civilização colonialista que ocupou Bajor em
busca de seus recursos naturais.
Evidentemente,
a partir desse cenário, abrem-se inúmeras possibilidades para se contar boas
histórias. Afinal, foram muitos anos de violência, resistência, colaboração e
inúmeros outros impactos sobre os bajorianos em especial. Um exemplo bastante
claro está já na própria estação que dá nome à série.
No
início da desocupação a estação Terok Nor foi renomeada como Deep Space Nine.
Terok Nor foi construída por ordem dos cardassianos alguns anos antes, tendo
como função processar os minérios extraídos do planeta por meio do trabalho
escravo de bajorianos (que também forneceram a mão de obra para a sua
construção). Mas vejamos como essa questão é interessante. Tão logo os
cardassianos abandonam a estação, e esta passa para o controle dos bajorianos e
da Federação, o seu nome é trocado. É a ressignificação que falamos antes. O
nome Terok Nor, de origem cardassiana e que representava os interesses destes
em Bajor é rapidamente apagado para dar lugar ao novo.
Terok
Nor era sinônimo de colonialismo, de opressão, de violência, de escravidão, de
estupro, de roubo. Enfim, uma nomenclatura que sintetizava por si só toda a
brutalidade cardassiana sobre o povo de Bajor. Evidentemente, a tabuleta com
este nome não poderia permanecer de pé, sendo imperioso que os bajorianos
fizessem esse acerto de contas com o passado, apagando de uma vez por todas o
nome que trazia à vida, cada vez que lido ou pronunciado, o terror da ocupação.
Os
símbolos são importantes para criaturas simbólicas como são as formas de vida
inteligente. No caso de Terok Nor, a troca por Deep Space Nine simbolizou o
início de uma nova era. Um momento de reconstrução em que os bajorianos
poderiam retomar o curso normal de sua história. Uma coisa que não tem nome não
existe. A estação Deep Space Nine nomeada dessa forma indica a superação de uma
época de horror e descortina para os bajorianos um horizonte limpo e tranquilo,
muito mais condizente com a sua cultura espiritualista.
Vejamos
que, diferentemente do que acontece com a estátua de Borba Gato, a estação não
foi destruída ou incendiada por aqueles vitimados pela ideia que ela representou.
Há uma diferença brutal entre uma estátua e uma edificação. A estátua de Borba
Gato tem uma única serventia para a história: ser destruída. A sua destruição é
que se tornará o objeto histórico merecedor de análise, estima e aplauso. Por
que a estátua foi destruída? Essa é a pergunta que desvelará todo o sentido da
luta dos povos oprimidos.
A
mesma coisa aconteceria se existissem estátuas de Gul Dukat em Bajor. Dukat foi
o administrador cardassiano da ocupação, sendo responsável por todos os
horrores desta. Ou então se houvesse um monumento em homenagem a Aamin Marritza,
conhecido como o “açougueiro de Gallitep”, um dentre os muitos campos de
concentração que vitimaram fatalmente milhões de bajorianos. Certamente, estas
hipotéticas estátuas seriam derrubadas sem pestanejar pelos bajorianos, dentre
os quais não se levantaria voz alguma exigindo que ficassem de pé em nome de
ideias rasas de patrimônio histórico.
Terok
Nor, ao contrário, não deve ser destruída. A troca de seu nome é o ato mais
importante que pode ser realizado. Ela se torna assim posse e ferramenta dos
bajorianos. Ela foi construída pelas suas próprias mãos! Aquela velha
instalação que serviu para fornecer o lucro do ocupador, agora torna-se
instrumento de paz e de reconstrução, guiando o povo que sofreu a violência a
um novo futuro.
Abaixo
a estátua de Borba Gato! Viva a Deep Space Nine!
***
Eduardo
Pacheco Freitas é professor, historiador e autor de dois livros sobre o
universo de Jornada nas Estrelas: Star
Trek: utopia e crítica social (2019) e O'Brien
deve sofrer! (2021).
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