quinta-feira, 2 de julho de 2020

A Federação é comunista?


O questionamento presente no título desse texto é, frequentemente, objeto de debates entre os fãs de Star Trek ou até mesmo de ficção científica em geral. Vale lembrar que Star Trek é uma série diferente das outras produções do mesmo gênero, já que nos apresenta um futuro utópico em vez dos onipresentes futuros distópicos do nicho da ficção científica. Por isso mesmo, é natural que surjam especulações sobre a natureza dos sistemas políticos, econômicos e sociais representados pela Federação Unida de Planetas.

Afinal de contas, se a distopia é nitidamente derivada do horror e do colapso final capitalista, a utopia seria a sua antítese comunista.

Antes de procurarmos responder diretamente à pergunta-título, é necessário considerarmos que Star Trek é um produto da grande e poderosa indústria cultural estadunidense. Como tal, tem como objetivo o lucro. Tem como finalidade ser vendida no mercado interno e externo, gerando também toda uma cadeia rentável de produtos derivados, como quadrinhos, livros, roupas, colecionáveis, grandes eventos, cruzeiros etc. etc. etc. É um negócio lucrativo para os detentores da marca Star Trek e também para uma infinidade de outros empresários em todo o mundo.

É possível falar-se ainda assim de uma sociedade comunista que seria a base das atividades da Frota Estelar e portanto da maior parte dos personagens vistos na tela? É possível que, por trás de um produto típico da indústria cultural capitalista, ainda assim esteja escondida (ou nem tanto assim) uma ética comunista?

Nem tanto ao céu (ou espaço), nem tanto a terra.

Star Trek, por ser produto de uma grande empresa, sempre carregará traços maiores ou menores da sua filosofia. Mas a empresa não faz nada sozinha. Quem cria Star Trek são os trabalhadores intelectuais e os técnicos. Dentre os principais trabalhadores por trás do sucesso de Star Trek estão os roteiristas. Eles estão no centro da produção. E, como temos visto ao longo de cinco décadas, eles são em geral bastante críticos.

É a crítica social desenvolvida por gerações de roteiristas envolvidos com Star Trek que formatou a ficcional Federação Unida de Planetas e os seus valores de igualdade, liberdade, tolerância, cooperação e paz.

É a insatisfação desses roteiristas com o presente - com o ethos capitalista e imperialista - que os levou a criar, olhando para o futuro, uma das mais importantes marcas de Star Trek: a crítica ao capitalismo e o sonho de uma sociedade pós-capitalista. Ambas estão amalgamadas na Federação.

Gene Roddenberry foi o primeiro a concebê-la como uma sociedade onde os seres humanos, convivendo com diversas espécies alienígenas (representações da diversidade étnica e cultura humana) superaram as primitivas formações sociais baseadas na acumulação de riqueza. Podemos dizer que Roddenberry era um comunista? Não. Mas seu sonho aproxima-se de maneira impressionante ao comunismo. Na Federação Unida de Planetas os valores principais giram em torno da cooperação e do conhecimento. O comandante Benjamin Sisko já elucidava essa questão logo no primeiro episódio de Deep Space Nine:

A coisa mais importante a entender sobre os seres humanos é que o desconhecido define nossa existência. Estamos constantemente procurando, não apenas respostas a nossas perguntas, mas novas perguntas. Somos exploradores. Exploramos nossas vidas dia a dia , e exploramos a galáxia, tentando descobrir as fronteiras de nosso conhecimento, e é por isso que estou aqui — não para conquistá-los com armas ou ideias, mas para coexistir… e aprender (DS9, Emissary, 1993).

Além disso, a Federação se distingue por aquilo que chamaríamos dentro do movimento comunista de internacionalismo. Ou seja, a busca por uma grande união de países que têm como objetivo o bem comum da humanidade. Sem exploração entre homens e nações. “Uma terra sem amos: a Internacional”, descreve poeticamente o hino dos comunistas. Porém, o comunista sabe que o internacionalismo não é sinônimo de homogeneização cultural. Ele convive perfeitamente com as identidades nacionais, que jamais são suprimidas em benefício de um ideal abstrato de comunismo. Domenico Losurdo, apoiado em Gramsci, esclarece a questão:

O internacionalismo não tem nada a ver com o desconhecimento das peculiaridades e identidades nacionais que continuarão a subsistir muito depois da queda do capitalismo (LOSURDO, 2004, p. 121–122).

Não é isso a Federação? Mas alguns críticos, pensando nesta, que claramente apresenta formas estatais, argumentarão: “na sociedade comunista o Estado deixa de existir”.

Esta é uma visão utópica e messiânica do comunismo. Ela remete ao fim da história e de toda e qualquer contradição que adviria do mundo comunista. Com o término das contradições capitalistas novas contradições apareceram, sem dúvida menos intensas e cruéis como as atuais. Mas ainda existiriam. Há a ideia de que o Estado surge na sociedade civil e se opõe a esta, sendo, por fim, reabsorvido por essa no comunismo. Gramsci coloca em discussão a tese de extinção do Estado apontando que a própria sociedade civil é uma forma de Estado.

Além disso, é lícito pensar que com o desenvolvimento da sociedade comunista a função repressora do Estado tende a desaparecer dando lugar às funções econômicas e culturais, que percebem enorme progresso. Obviamente, alguma forma de coerção, ainda que mínima, continuará existindo.

Não é exatamente essa forma de Estado que encontramos representada na Federação Unida de Planetas? Ela não é uma associação de centenas de civilizações, com diferenças culturais consideráveis, porém unidas em um propósito de cooperação e paz? Uma reunião de povos sob a mesma bandeira, sob um governo central (Conselho da Federação) porém cada um deles mantendo sua própria língua, cultura, práticas ancestrais etc.?

Esta total liberdade cultural que vigora sob uma única bandeira pode ser verificada tanto em nível galáctico (basta pensar em vulcanos, humanos, andorianos, telaritas etc.) quanto na Terra, quando vemos Joseph Sisko com sua culinária creole ou Picard produzindo seu vinho tipicamente francês.

Ao mesmo tempo não constatamos que o Estado conhecido como Federação Unida de Planetas deixa de lado a repressão e investe na aquisição de conhecimento e no compartilhamento de suas descobertas?

Evidentemente, há o caso dos Maquis, que possuem uma causa justa, contra o imperialismo cardassiano associado momentaneamente à Federação e são reprimidos por esta última. Mas não é essa uma exceção (embora vergonhosa) e que cabe perfeitamente nas contradições que ainda não cessaram e no processo de longa duração de implementação de uma sociedade não opressiva? De qualquer forma, lembremos que a coerção, mesmo que diminuta ainda existirá, como de fato existe na Federação.

Como visto, ao perguntarmos se a Federação é uma sociedade comunista encontramos muitas dificuldades pelo caminho. Desconsiderando os fãs incapazes de compreender que, no mínimo, a Federação assume a forma de uma sociedade pós-capitalista, alguns comunistas — em geral aqueles que atacam as revoluções chinesa, vietnamita, coreana e cubana — entenderão que a resposta é não.

Afinal, para eles, não é possível o comunismo com Estado e o comunismo nacionalista, que preserva e sustenta a cultura nacional, sobretudo frente ao imperialismo.

Já para um outro tipo de comunista, a resposta poderá ser afirmativa. A Federação é uma forma de Estado que promove a igualdade e a liberdade como valores coetâneos e complementares, existindo como ente econômico, cultural e político pertencente a diversos povos associados. Embora nela ainda exista um mínimo de coerção, não há mais espaço para a opressão de classe ou contra identidades nacionais, elementos indissociáveis e indispensáveis para a construção do comunismo.

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