Desde 1966, quando foi ao ar pela primeira vez, Star Trek é, essencialmente, uma série política. E não precisa ser nenhum gênio, possuir uma capacidade de interpretação semiótica espetacular ou um doutoramento em ciências cinematográficas e da TV para chegar a esta conclusão. Na verdade basta assistir, assim como quem não quer nada, alguns dos seus episódios para que esse entendimento fique claro.
Um primeiro exemplo. Com “Balance of Terror”, da série original, aprendemos que o preconceito e a intolerância não têm vez na Enterprise. Devemos lembrar que os Estados Unidos naquela época ainda eram um Estado racial, onde negros não tinham os mesmos direitos que os brancos. Em “Let That Be Your Last Battlefield" a crítica ao racismo é mais explícita, tratado de aliens com a cor da pele diferente que se odeiam.
De qualquer forma, o racismo AINDA continua vigorando e ceifando vidas por lá (e por aqui) vide o sufocamento brutal de George Floyd e o assassinato do menino Miguel Otávio.
A eugenia é tratada tanto em “Patterns of Force”, que não é apenas mais uma história de nazistas no espaço. O mesmo tema encontramos no episódio amado “Space Seed”, onde um arqui-vilão racista — favorável à eugenia — tenta tomar o controle da Enterprise.
Em “Mirror, Mirror”, encontramos a barbárie imperialista e capitalista como a completa oposição da Federação. Em “The Cloud Minders” aprendemos que a sociedade de classes é irracional. Spock sentencia: esta não é uma liderança sábia. É a luta de classes manifesta de maneira contundente.
Mas seguimos. Falamos até agora somente da série clássica. E todas as outras que vieram em seguida? Em A Nova Geração somos apresentados às diversas críticas ao fascismo, à homofobia, ao capitalismo, ao colonialismo e tantos outros temas que são… políticos. Episódios como “The Neutral Zone” e “The Drumhead” são absolutamente políticos.
DS9 pode ser considerada a mais sombria de todas as encarnações de Star Trek e até por isso mesmo, talvez, a mais política. Nela somos confrontados com o racismo, o colonialismo, o genocídio, o fanatismo religioso, as relações desiguais e predatórias entre patrões e empregados, o ensino laico etc. etc. etc.
São tantos temas, tantas reflexões políticas que a tarefa de enumerá-las é difícil. Talvez um dos 45 minutos mais brilhantes de todos os tempos já apresentados na TV mundial seja o episódio “Far Beyond the Stars”, onde Ben Sisko e Benny Russell, no passado e no presente, de conectam, sem saber mais quem é o sonho, quem é o sonhador. Porém evidenciando que a luta contra o racismo atravessa os séculos.
Os negros ainda continuam sendo massacrados, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, seja na África ou no Haiti, ainda vítimas de desagregação social e econômica imposta pelos europeus ao longo de cinco séculos.
Star Trek nos faz refletir sobre isso, não somente nos episódios explicitamente políticos, mas também em ideias que a circundam desde sempre, como a Diretriz Primeira, um salto civilizacional. A Federação é uma sociedade sem classes, que superou o capitalismo e que tem outros objetivos muito além da concentração de riqueza.
Em Voyager encontramos a discussão sobre a guerra, sobre a indústria cultural, sobre a assimilação borg, nada mais, nada menos, do que a assimilação imperialista que submete culturas, as hegemoniza e as coloca para trabalhar em benefício do explorador.
Em Enterprise, encontramos discussões sobre a xenofobia, sobre o racismo, sobre a intolerância. As questões de gênero também são abordadas.
Em Discovery voltamos à reflexão sobre o fascismo, que volta e meia assombra a Federação. Como disse um pensador: o fascismo é eterno. Basta a mínima instabilidade econômica, social ou política, para que ele seja conjurado novamente. A ideologia é brilhantemente abordada em “The Sound of Thunder”.
Picard nos mostra com uma crueza belíssima o que é a o ódio ao diferente. A ficção científica tem nos mostrado há décadas a discussão sobre a vida artificial, tema abordado de maneira incrível por Picard. A representação da intolerância é feita pela relação entre humanos e androides.
Por essa e outras, que me parece inconcebível um fã de Star Trek não aceitar que a série é política sim. As evidências estão aí. Nessa época em que o racismo aflora com toda força, em que o fascismo perdeu a vergonha e saiu à luz do dia, mais do que nunca é importante reforçar o caráter político de Star Trek.
A série, como um todo, sempre se posicionou sobre temas políticos e sempre do lado certo da história, ou seja, ao lado dos oprimidos e não dos opressores. Isso não é óbvio para quem assiste?
O fã também deve se posicionar, pois quem não se manifesta diante da opressão já escolheu o lado do opressor. O racismo e o fascismo devem ser destruídos, sem mais delongas. O universo de Star Trek e a utopia da Federação representam um mundo sem essas chagas, que não são fatos da natureza. Pelo contrário, são históricas e como tais são instrumentos de perpetuação das classes dominantes que podem e devem ser combatidos até a vitória final.
É por isso que eu gosto e sempre irei gostar de Star Trek. Afinal, se trata de uma série antifascista, antirracista, antimachista, anti-homofóbica e, especialmente, anticapitalista.
É a mais política das séries.
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