“Duet” é o 19º episódio da primeira temporada de Deep Space Nine. Muitas pessoas não gostam dessa temporada, dizem que a série engrena mesmo depois da terceira. Eu não não concordo com isso, pois gosto bastante da primeira temporada, sobretudo pelo impacto que ela causa por ser tão diferente do que estávamos acostumados na série original e em TNG. O episódio foi ao ar pela primeira vez em 13 de junho de 1993, portanto, há exatos 26 anos.
Antes de iniciar a análise do episódio eu preciso fazer um alerta ao leitor. Se tu gostas de Star Trek fechado em si mesmo - o que não tem o menor problema - esse texto possivelmente não vai te interessar.
Meu objetivo é relacionar o episódio em questão com alguns fatos históricos do século 20, mais precisamente ao nazismo e aos crimes de guerra dos oficiais nazistas, que na minha visão estão muito presentes no episódio. Então, o texto será dividido em duas partes: na primeira traçarei o contexto histórico sobre o qual quero relacionar o episódio - juntamente à crítica da categoria de totalitarismo de Hannah Arendt - e em seguida, na segunda parte, falarei do episódio em si, articulando com o que expus na primeira parte. Então se tu não curtes esse tipo de análise, é hora de dar uma navegada pelo blog e procurar outro texto: eu te garanto, tem muita coisa interessante aqui.
Eichmann, seu julgamento e Hannah Arendt
O episódio “Duet” tem tudo a ver com o contexto do pós-guerra, referindo-me à Segunda Guerra Mundial, pois ele trata de um criminoso de guerra cardassiano que se aproxima muito da figura de Adolf Eichmann, um burocrata nazista que coordenava a logística de envio de judeus para os campos de concentração.
Eichmann conseguiu escapar para a Argentina após o fim da guerra porém foi capturado em uma operação do Mossad, o serviço secreto israelense, e levado a julgamento em Jerusalém, onde foi condenado e executado na forca.
O relato mais importante dessa história foi feito pela filósofa liberal Hannah Arendt, que foi contratada pela revista New Yorker para cobrir o julgamento entre 1961 e 1962, período que este durou. Eu preciso dizer antes que discordo quase integralmente das obras de Hannah Arendt, sobretudo nas categorias de totalitarismo e de banalidade do mal.
E por quê discordo de Arendt?
Porque ela tenta nos fazer crer que os crimes cometidos pelos nazistas apresentam um grau singular de ineditismo, quando na verdade o Terceiro Reich não pode ser entendido sem a tradição colonial do ocidente e sobretudo sobre o modelo colonial dos Estados Unidos, que criou o Estado racial (forma de Estado segregacionista, com leis diferentes para etnias diferentes), o genocídio (no caso os indígenas, que eram deportados, colocados em reservas ou exterminados, a chamada Marcha para o Oeste, que no caso dos Alemães foi o Leste europeu, a germanização dos territórios eslavos) e o uso da eugenia (esterilização de grupos sociais indesejados para “purificação da raça”), que foi criada na Inglaterra por Francis Galton mas prosperou nos Estados Unidos.
Em Mein Kampf, a bíblia do nazismo escrita por Hitler, encontramos grandes elogios aos Estados Unidos, da mesma forma que outro ideólogo do nazismo, Alfred Rosenberg, elogiava os Estados Unidos como “esplêndido país do futuro”.
Os campos de concentração existiram tanto nos Estados Unidos para pessoas de origem japonesa - George Takei foi internado em um com sua família - como na África, construídos pelos ingleses, onde milhões de africanos foram torturados e dizimados.
Para se ter uma ideia, um dos termos centrais da ideologia nazista, “untermensch”, foi cunhado nos Estados Unidos em um livro chamado “A ameaça dos sub-homens”, o termo original “underman”, cunhado por Lothrop Stoddard. O livro foi prontamente traduzido para o alemão e influenciou diretamente aqueles que viriam a ser os dirigentes nazistas. Ou seja, não há ineditismo nos crimes nazistas, embora terríveis. A tentativa de Arendt em nos convencer disto reside unicamente no fato de que Hitler quis implantar seu império escravista e colonial no próprio território da Europa. Por isso a categoria de totalitarismo é vazia, pois se o Estado alemão era totalitarista, Estados Unidos e Inglaterra também o foram em algum momento da história. Fora o absurdo de colocar a União Soviética no mesmo balaio, que não entrarei na questão agora para não me alongar muito.
A expectativa da cobertura do julgamento e da descrição da figura, evidentemente monstruosa de Eichmann, por parte de Arendt, que era judia, decepcionou muita gente, pois esperava-se que ela de fato retratasse Adolf Eichmann como um monstro sanguinário, pelo fato dele ter organizado a morte de milhares de pessoas durante a guerra.
Contudo, Arendt, ao longo do julgamento e ao acompanhar os depoimentos de Eichmann, chegou a conclusão de que ele era um homem normal, “assustadoramente normal”, em suas palavras, mediano, um tenente-coronel da SS, que tinha a lealdade ao seu país e às leis do seu país, acima de tudo, acima de todos. O lema da SS, organização paramilitar nazista, comandada por Heinrich Himmler, um dos arquitetos da “solução final” para a questão judaica, ou seja, o extermínio dos judeus, era, justamente, “minha honra é minha lealdade”. Era um cidadão exemplar no contexto da Alemanha nazista, era um cumpridor fiel das leis.
Em resumo, Eichmann não conseguia ver nada de errado, embora fosse uma figura normal, em enviar os judeus para a morte, pois esta era a lei em vigor na Alemanha nazista. Ele somente transportava judeus, não se sentia responsável por suas mortes. É precisamente isto que Arendt chama de “banalidade do mal”, em seu relato sobre o julgamento feito para a revista New Yorker e publicado como livro sob o título “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”. Adolf Eichmann era um burocrata, um operador de logística, que tentava fazer seu trabalho da melhor forma possível, batendo metas, tornando mais eficiente a catalogação dos judeus e seu transporte para os campos de concentração onde seriam exterminados. Era uma espécie de nulidade, sempre pronto a receber e cumprir ordens. No entanto, essa figura do administrador dos povos a serem escravizados ou exterminados não foi criação dos nazistas, daí a fragilidade da categoria de “banalidade do mal”.
Marritza e a banalidade do mal de Hannah Arendt
Traçado esse panorama do contexto histórico a respeito da ideologia nazista e de Adolf Eichmann, eu chego no episódio “Duet” propriamente dito e nas suas relações com tudo isso.
O episódio foi baseado num romance escrito no final dos anos 60 por Robert Shaw, que é mais conhecido por ter feito um papel no filme Tubarão. Os direitos do livro foram vendidos e ele foi adaptado para um peça de teatro que fez enorme sucesso na Broadway no final da década de 60, chamada “The Man in the Glass Booth” (a tradução seria O Homem na Cabine de Vidro), que remete diretamente à imagem de Eichmann vista durante seu julgamento, dentro de uma cabine para sua proteção.
A história, em resumo, contava a prisão de um homem em Nova York, que foi preso e levado à julgamento por crimes de guerra na Segunda Guerra Mundial em Jerusalém. A partir desse plot, que é muito semelhante à história real de Eichmann, duas autoras, que já tinham escrito outros episódios de Star Trek, elaboraram uma ideia que foi roteirizada pelo Peter Allan Fields, que tem no currículo como roteirista nada mais nada menos do que The Inner Light (TNG) e In the Pale Moonlight (DS9).
Muito já se falou a respeito da opressão cardassiana sobre Bajor remeter à dicotomia nazistas/judeus durante a 2ª Guerra Mundial. No episódio 19 da 1ª temporada de Deep Space Nine, a analogia faz todo o sentido. Em "Duet", o cardassiano Aamin Marritza chega à estação necessitando de cuidados médicos, portador de uma doença chamada Kalla-Nohra, adquirida após um acidente no campo de trabalhos forçados para bajorianos de Gallitep. Marritza afirma ter atuado no campo como um simples arquivista, portanto, um burocrata, à semelhança de Adolf Eichmann, sem maiores implicações, em sua visão, na violência praticada contra os bajorianos. Em Gallitep, os oficiais cardassianos cometeram toda sorte de atrocidades contra os bajorianos confinados, que morriam assassinados ou vitimados pela fome e pela doença.
Após ser detido para averiguações, já que Kira exige que Marritza seja julgado como criminoso de guerra por sua atuação no campo de Gallitep, o cardassiano confessa que na verdade se trata de Gul Darhe'el, o oficial responsável pelo campo, logo, culpado pela tortura e morte de milhares de bajorianos. Nesse meio tempo, Sisko e Odo investigam com a ajuda de Gul Dukat se a informação procede, obtendo deste a explicação de que Gul Darhe'el havia morrido alguns anos antes enquanto dormia, semelhantemente a muitos oficiais nazistas que nunca pagaram por seus crimes. Em sua confissão, numa cena antológica, afirma para Kira: "O que você chama de genocídio, eu chamo de dia de trabalho", aproximando-se de maneira evidente ao papel de Eichmann no holocausto judaico.
Contudo, na sequência da investigação, descobre-se que o cardassiano se tratava realmente do arquivista Aamin Marritza, que sentindo-se terrivelmente culpado por sua participação no genocídio bajoriano desejava ser executado como Gul Darhe'el, para que Cardássia fosse responsabilizada, enfim, por seus crimes durante a ocupação de Bajor. Na ficção, um desfecho bastante diferente do acontecido com Eichmann, que, de certa forma, nunca percebeu a magnitude de sua participação no extermínio dos judeus, pois somente cumpria ordens, como um funcionário qualquer.
De semelhante, além do fato de ter presenciado todo o horror de um campo de concentração sem que se insurgisse contra, apenas sua morte, pelas mãos de um bajoriano no promenade. Assim como Eichmann, condenado e enforcado pelos israelenses, em 1º de junho de 1962.
Leituras indicadas:
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato da banalidade do mal. Disponível em: https://www.academia.edu/33480755/Eichmann_em_Jerusal%C3%A9m_-_Hannah_Arendt.pdf
LOSURDO, Domenico. Para uma crítica à categoria de totalitarismo. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/critica17-A-losurdo.pdf
Nenhum comentário:
Postar um comentário