domingo, 5 de março de 2017

O roteiro original de Cidade à Beira da Eternidade

Meses depois de receber a HQ com o roteiro original de Harlan Ellison para Cidade à Beira da Eternidade, publicada no Brasil pela Mythos, finalmente pude ler a obra. 

Com arte de J. K. Woodward e adaptação dos irmãos Scott e David Tipton, a publicação traz, pela primeira vez, a ideia original para o episódio, que foi ao ar há quase 50 anos, em  6 de abril de 1967.

De acordo com o senso comum, o roteiro foi adaptado por não existirem, naquela época, condições tecnológicas que permitissem sua filmagem. Contudo, segundo o autor, este não foi o motivo real, não havendo qualquer outra explicação que dê conta sobre os motivos que levaram os produtores de TOS a optarem por mudanças significativas na história escrita por Ellison.

Como todos sabem, a história do episódio que frequentemente encabeça as listas de melhores histórias já contadas por Jornada nas Estrelas, mostra que a volta acidental do Dr. McCoy no tempo - mais precisamente à década de 1930, nos EUA - causa um tremendo estrago na história, fazendo com que a Enterprise deixe de existir, por exemplo. Para tentar resolver a situação, Kirk e Spock atravessam o portal do tempo, conhecido como "Guardião da Eternidade",  na tentativa de evitar a interferência causada por McCoy no continuum temporal.

ATENÇÃO: SPOILERS DA HQ A PARTIR DE AGORA

As diferenças do roteiro que de fato foi filmado em relação ao original mostrado por esta HQ já começam a partir daí. McCoy, por exemplo, nem sequer aparece na história (aparece em dois quadros, sem falas). Quem volta no tempo é um oficial chamado Beckwith, um ambicioso e amoral traficante de drogas, que sonha em enriquecer e deixar a vida no espaço. Após ser quase denunciado por um cliente de suas drogas (também tripulante da Enterprise), Beckwith acaba por assassiná-lo, e em sua fuga alucinada da nave chega a um planeta que contém, nas palavras de Kirk, uma "cidade à beira da eternidade". Nesta, encontram-se os guardiões da eternidade, que, diferentemente do episódio com o qual estamos habituados, onde vemos apenas o portal, são figuras humanoides, com aspecto de idade muito avançada e que aparecem em uma espécie de projeção.

Kirk tendo ao fundos Guardiões da Eternidade

Beckwih ao atravessar o portal, provoca a mudança em toda história, fazendo com que o universo que Kirk e sua tripulação conheciam deixasse de existir. Ao contrário do episódio, nossos bravos tripulantes conseguem retornar à nave, contudo, esta não é mais a Enterprise, mas uma nave de renegados chamada Condor. Após uma luta com os bandidos que comandam a nave, nossos herois conseguem se trancafiar na sala de transporte. A ordenança Rand, fica como responsável por manter os inimigos longe, enquanto Kirk e Spock retornam ao planeta para entrarem no portal atrás de Beckwith.

Ao chegaram na Terra da década de 30, desta vez são recepcionados por uma turba xenófoba e intolerante, que confunde Spock com um chinês. Ao se refugiarem em um porão, não são descobertos por Edith Keeler, como acontece no episódio, mas sim por um faxineiro gente boa, que lhes oferece emprego. 

Intolerância em contexto de crise econômica

Após vários dias à espera de Beckwith, encontram por fim Edith Keeler, que apresenta algumas pequenas diferenças da personagem que vimos na tela. Por exemplo, a missão conduzida por Keeler desta vez não é mostrada, mas apenas seu trabalho nas ruas, falando e ajudando os mais pobres, em pleno contexto da depressão econômica. Da mesma forma que no episódio, Keeler e Kirk se apaixonam, iniciando um romance. A partir disso Kirk se enche de dúvidas sobre deixar Keeler morreu, sendo chamado à razão por Spock. 

Por fim, Spock e Kirk encontram Beckwith, com a ajuda de um paralítico que vendia maçãs na rua, e que afirmava ter lutado em Verdun, na Primeira Guerra Mundial. Após receber dois dólares de Kirk, para colaborar na busca à Beckwith, acaba se sacrificando, ao ficar na frente do disparo do fêiser de Beckwith quando este tenta matar Kirk. Quando Keeler, como no episódio, vai atravessar a rua, o maléfico Beckwith tem um arroubo de santidade e tenta salvá-la da morte por atropelamento, sendo contido por Spock. O que à primeira vista parece uma solução estranha do roteiro, ao colocar Beckwith como uma pessoa capaz de sentir empatia e tentar salvar Keeler, o autor na verdade tenta fazer uma discussão sobre a complexidade do ser humano, que pode conter diversas facetas. 

Kirk e Spock então são instantaneamente transportados de volta para o planeta dos Guardiões, onde Beckwith mais uma vez consegue escapar e voltar ao portal, contudo desta vez ficando em um loop temporal no interior de uma supernova, sofrendo eternamente uma morte dolorosa. 

Os pontos fortes do roteiro original de Ellison sobre o roteiro que de fato foi filmado residem, por um lado, na abordagem do problema do uso de drogas. Somos apresentados a uma realidade destoante da utopia imaginada por Gene Roddenberry, onde tripulantes cansados da dura jornada pelo espaço recorrem ao uso de substâncias ilícitas. Por outro lado, Ellison coloca a discussão, tão atual, sobre a intolerância em relação a estrangeiros. Portanto, crítica social a qual Jornada sempre foi muito afeita. Nesse sentido, podemos dizer que o roteiro filmado perdeu em alguns aspectos. No entanto, ganhou em outros. A decisão em se contar a história com o personagem McCoy fez com que o episódio se tornasse muito mais interessante, de um lado, devido a grande atuação de DeForest Kelley, por outro ao tornar tudo mais crível, devido aos laços de amizade do trio. De qualquer forma, se eu pudesse dar um veredicto, este seria favorável ao roteiro filmado, pois em minha visão ele foi aprimorado em relação ao original, cortando elementos de certa forma estranhos a Star Trek e incluindo outros mais sintonizados com a franquia. Contudo, vale muito a pena a leitura desta HQ, sobretudo por proporcionar uma visão diferente daquela que temos a respeito de um dos episódios mais icônicos de toda a franquia.

Spock, não estou te reconhecendo.
Esqueceste da Relatividade?

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