Com
vasta formação acadêmica em Direito Romano, o professor Dárcio Roberto Martins
Rodrigues é um exemplo notável de dedicação à academia e à cultura pop.
Bacharel, Doutor e Livre Docente pela Universidade de São Paulo, ele também
possui experiências internacionais como bolsista da Heinrich-Hertz Stiftung e
pesquisador no Instituto de Direito Romano da Universidade de Köln. Como
professor associado da Faculdade de Direito da USP, ensina disciplinas como
Direito Privado Romano e Latim.
Além
de sua carreira jurídica, Dárcio é autor do livro "Star
Trek: A Série Clássica – A Fascinante Saga Comentada Episódio por Episódio",
no qual analisa com rigor acadêmico os episódios de uma das séries de ficção
científica mais influentes de todos os tempos. O livro reflete sua paixão de
décadas por Star Trek e sua habilidade em conciliar metodologia científica com
análise cultural, destacando os temas históricos e filosóficos abordados pela
série.
O que o motivou a escrever um livro comentando episódio por episódio de Star Trek: A Série Clássica?
A
pergunta é interessante, porque na realidade eu nunca pretendi escrever livro
algum, fui escrevendo-o – por estranho que possa parecer – sem o saber, e,
depois de tê-lo escrito, jamais imaginei que um dia seria publicado. Ocorre que
eu era apreciador da série clássica de Star Trek já há décadas, tendo visto e revisto cada
episódio incontáveis vezes e estudado tudo o que já foi escrito sobre a série e
que me caía nas mãos. Isso me foi enchendo a cabeça de ideias e fazendo-a
fervilhar com pensamentos e análises acerca dos vários episódios. De repente (isso
deve ter sido por volta de 2007), deu-me vontade de passar esses pensamentos
para o papel, apenas para meu uso pessoal, para reunir e consolidar as minhas
ideias por escrito. Mas a cada revisão dos episódios, ou a cada leitura de
novos textos sobre eles, novas ideias surgiam, e eu ia acrescentando ao
material já escrito. Quando o resultado começou a ficar extenso demais, senti a
necessidade de organizá-lo com mais rigor, usando para isso o único método que
conheço, pela minha formação profissional, que é o método científico-acadêmico:
notas de rodapé, citações rigorosas à literatura consultada, bibliografia bem
ordenada, estruturação de capítulos (um por episódio), desenvolvimento de ideias
etc. E, embora eu julgasse que ninguém jamais leria esse material – a não ser, quem
sabe, algum amigo próximo, a quem eu eventualmente oferecesse uma cópia –
comecei, quase sem querer, a redigir também com maior rigor, como se de fato se
destinasse a um público leitor. Um belo dia (e isso foi no ano de 2016) eu
percebi, de repente, que o que eu tinha em mãos era uma monografia completa
sobre Star Trek (na época, eu ainda não ousava chamá-la de “livro”). Complementei-a
com índices meticulosos e sinopses detalhadas de cada episódio. Fiz uma
impressão caseira, mandei encadernar com espiral, e considerei o assunto
encerrado para sempre. Ofereci uma cópia ao meu hoje saudoso irmão mais velho
(que foi o primeiro a me apresentar a série, quando eu era ainda pré-adolescente,
e a chamar-me a atenção para a sua qualidade) e a um ou outro amigo trekker –
todos, sem exceção, agradeceram mas a engavetaram sem ler... Até que um dia, em
2022, recebi em casa para o almoço um querido amigo, proprietário e diretor da
editora que publica todos os meus livros jurídicos (pois sou professor de
Direito). Em meio à conversa descontraída e informal, ele por acaso mencionou
de passagem que era fã de Star Trek. Surpreendido ao ouvir isso, mostro
a ele casualmente aquela impressão caseira que eu tinha, apenas como
curiosidade. Ele examina atentamente, folheia com interesse, lê alguns trechos,
e me pergunta: “você já pensou em publicar isso”? Eu respondi: “Não. Quem
aceitaria publicar”? “Eu publico!”, disse ele, entusiasmado. No dia seguinte,
enviei a ele o arquivo digitado, que foi imediatamente encaminhado para
editoração e em seguida para a gráfica. Poucas semanas depois daquele almoço,
recebi da editora um pacote contendo, como amostra, alguns exemplares já
impressos e prontos para comercialização. Só então eu percebi que tinha,
realmente, escrito um livro!
Quais foram os principais
desafios ao analisar e comentar uma série tão icônica e influente?
O
maior desafio talvez tenha sido fazer justiça a toda a riqueza de conteúdo
dessa série tão brilhante. Havia tanta coisa a dizer, tantos aspectos a
analisar e comentar, que necessariamente alguma coisa sempre ficava de fora, ou
era tratada sem a devida profundidade, por mais que eu fosse acrescentando
ideias e citações bibliográficas. Até hoje, reexaminando o que escrevi, acho-o
terrivelmente lacunoso e superficial. Depois de publicada a obra, passei por
momentos de grande frustração ao relê-la, chegando a arrepender-me de tê-la
publicado. Faltou dizer muita coisa. Se eu imaginasse que seria um dia
publicada, teria revisto-a por completo, acrescentado muito mais, feito mais
pesquisa. Mas, por outro lado, se eu fosse fazer isso, talvez não acabasse o
trabalho nunca, ou talvez findasse por desistir do projeto, insatisfeito com o
resultado. Ainda me questiono se fiz justiça à série e se consegui transmitir
ao leitor ao menos um esboço das ideias mais importantes. Olhando
retrospectivamente, foi, sim um grande desafio. Se desde o início eu soubesse o
quanto o seria, talvez nem tivesse começado...
Durante o processo de
pesquisa para o livro, houve alguma descoberta surpreendente sobre a produção
ou os bastidores da série?
Ah,
sim, inúmeras – todas elas, ou a maioria, incluídas, ou ao menos aludidas no
resultado final publicado. Tirando os detalhes da produção e as muitas
curiosidades e incidentes de filmagem (que relato no livro), uma das coisas que
mais me impressionaram foi a enorme dedicação dos fãs desde os primórdios,
muito antes de a série se tornar um fenômeno e surgirem os fã-clubes
organizados. Os fãs pioneiros, já nos primeiros tempos, quando a série ainda
estava em produção, operaram verdadeiros milagres – tais como a histórica
campanha de cartas (possivelmente totalizando perto de um milhão de cartas) que
salvou a série do cancelamento após a segunda temporada. Algumas fãs, como Bjo
Trimble e Wanda Kendall, mereceriam medalhas, ou até estátuas erigidas em sua
homenagem (quem quiser saber por quê, leia o meu capítulo introdutório à
terceira temporada). Mas a magnitude do movimento dos fãs, de um modo geral
(sobretudo nos campi universitários, onde, segundo se conta, a vida
praticamente parava nas noites em que Star Trek ia ao ar),
impressionou-me muito. Eu, que desde muito jovem cresci como um “trekker solitário”,
não imaginava que a série tivesse atingido de modo igualmente profundo e
envolvente um número tão grande de pessoas, motivando-as a coisas tão impressionantes.
A descoberta dos fãs-clubes (e das convenções que, ainda que tardiamente,
começaram a surgir mesmo no Brasil) foram uma grande revelação para mim.
Em sua opinião, quais são
os temas mais importantes que a série abordou e como eles se relacionam com o
contexto histórico da época em que foi produzida?
A
série foi produzida em meio ao período da chamada “Guerra Fria”, que foi um
embate entre o bloco democrático e liberal, capitalista (liderado pelos Estados
Unidos e seus aliados na Europa) e as ditaduras comunistas por detrás da
chamada “Cortina de Ferro” (controladas pela hoje extinta União Soviética),
visando à obtenção de uma hegemonia mundial política e militar. Esse conflito
dominava a realidade cultural da época, era algo muito forte; permeava todas as
esferas da atividade humana, era sempre o assunto do dia. Não era possível
ignorá-lo ou desconsiderá-lo, necessariamente estava apresente em tudo. Mas o
problema é que as redes de televisão preferiam deixar o assunto de lado,
abafá-lo. Era um tema que despertava paixões ideológicas de ambos os lados do
campo político – de modo diferente, mas análogo à “polarização” que vivemos nos
dias de hoje. As emissoras de televisão preferiam não entrar nessa briga, não
gerar controvérsia, alhear-se ao problema e à sua discussão. Por isso, em geral
impunham censura a tentativas de tratar esses temas de modo crítico e
inteligente nos filmes e séries, ou de propor reflexão séria sobre eles. Mas
inevitavelmente eles se faziam presentes, de diversas formas. Gene Roddenberry
muitas vezes declarou que intencionalmente utilizava Star Trek como
veículo para burlar essa censura, apresentando a sua realidade contemporânea de
maneira alegórica ou camuflada, representada figuradamente nos vários planetas
e civilizações visitados pela Enterprise. Quem era inteligente, entendia
– mas os censores, que são, por definição, gente pouco inteligente, não
percebiam, ou não sabiam como lidar com aquilo, e deixavam passar. Um dos
aspectos mais interessantes é observar como a Federação Unida dos Planetas
claramente representava o bloco ocidental na Terra do século XX, enquanto os klingons
e romulanos personificavam os seus adversários. De fato, essa identificação
foi tão forte, que muitos ideólogos de esquerda hoje nutrem um enorme rancor
contra Kirk e a Federação, criticando acerbamente sua atuação nos vários
episódios. Mas eles se esquecem de que a intenção de Roddenberry e sua equipe
não era de meramente tomar partido, louvando um dos lados e fustigando o outro.
Sua abordagem foi sempre crítica, mas de crítica construtiva. Certo, eles se
punham do lado do seu próprio país (pois a ideia de odiar a própria nação e os
próprios valores, de lutar pela sua aniquilação ou “cancelamento”, é uma noção
bastante recente, não existia na esquerda americana da época), mas seu
posicionamento era crítico; a Federação representa os Estados Unidos e seus
aliados tal como Roddenberry achava que eles deveriam ser, e não como realmente
eram; ou seja: Kirk e a Federação serviam como “exemplo didático” ou “role
model” de como o ocidente deveria atuar, segundo os criadores da série. Mas
sem maniqueísmos, nem idealizações: em alguns episódios eles revelavam entender
que a dura realidade obrigava também a Federação a às vezes agir de modo
questionável, e o espectador era convidado a refletir sobre isso. Tudo isso eu
discuto extensamente ao longo do meu livro.
Como
você vê a influência de Star Trek: A Série Clássica na cultura pop
e na ficção científica em geral?
Acredito
que foi muito grande. Embora já tivesse uma tradição rica e relativamente
antiga na literatura popular, a ficção-científica ainda se encontrava em uma
fase muito incipiente no cinema e na televisão. Predominavam os “monstros” ou
eternos invasores extraterrestres (comuns nos filmes dos anos 1950), ou uma ingênua
infantilização geral do gênero (que já datava desde o seriado de “Flash
Gordon”, no cinema nos anos 1930, até as séries de TV contemporâneas a Star
Trek, como “Perdidos no Espaço” (Lost in Space). Mas depois de Star
Trek a ficção-científica teve necessariamente de mudar, de amadurecer. Foi
revelado ao público que o gênero era coisa séria e potencialmente inteligente,
ao contrário do que muitos até então pensavam. Não dava mais para continuar com
aquele modelo antigo. Ainda continuaram a existir simples aventuras
infanto-juvenis, como a série de “Buck Rogers no Século XXV” na TV dos anos
1970, ou a grandiosa série de filmes de Star Wars nos cinemas, mas o
caminho para coisas mais sérias e inteligentes estava irreversivelmente aberto.
A ficção-científica nunca mais seria a mesma. Star Trek estava ainda em
produção quando apareceram nos cinemas o “2001: Uma Odisséia no Espaço” (de
Kubrick) e o “Planeta dos Macacos” (de Franklin J. Schaffner) – e Star Trek certamente
contribuiu para preparar o público para a apreciação de obras como essas. Filmes
como “Contato” (de Robert Zemeckis, 1997) ou “Interestelar” (de Christopher
Nolan, 2014) são, de certa forma indireta, tributários remotos de Star Trek.
De um modo geral, é inegável que Star Trek deixou marca indelével
na cultura popular. O modo como as pessoas hoje pensam na ficção-científica
e nas viagens espaciais foi definitivamente influenciado pela série. Muitos “tropes”
(isto é, clichês ou lugares-comuns) das histórias acerca de viagens espaciais
foram estabelecidos por Star Trek e hoje são como uma “πρώτη οὐσία” (ou
“primeira essência”) do gênero. Também é desnecessário dizer que muitos
aparatos tecnológicos dos dias de hoje (dos telefones celulares às telas
monitoras de funções vitais nos leitos hospitalares) tiveram, se não a sua
tecnologia, ao menos o seu design certamente sugerido ou influenciado
por Star Trek.
O que espera que os
leitores levem consigo após lerem seu livro sobre Star Trek: A Série
Clássica?
Eu
espero influenciar os leitores para que passem a respeitar e apreciar com
atenção, reflexão, senso crítico e inteligência não somente Star Trek,
mas todo o cinema e as séries de televisão. Antigamente havia muito pouco
respeito por essas formas de arte e cultura popular. Houve um tempo em que o
cinema, de um modo geral, era desprezado e visto como algo inferior, como o
“primo pobre” da literatura, do teatro e das artes plásticas. Hoje, felizmente,
tal tendência parece ter-se esvanecido, e certamente contribuíram muito para
isso os críticos franceses mais intelectualizados dos anos 1950 e 1960, que
escreviam para publicações como os Cahiers du Cinéma e a Positif.
Mas já em 1911 fora pioneiríssimo o intelectual italiano Riccioto Canudo: numa
época em que praticamente todo mundo reputava o ainda nascente cinema como mero
divertimento de parque de diversões para mentes menos privilegiadas (o que, levando
em conta o primitivo estado de evolução dessa arte naquela época, era até
compreensível) ele foi um verdadeiro visionário, porque não apenas foi o
primeiro considerar o cinema uma arte de mesma estatura das demais (foi Canudo
quem cunhou o termo “Sétima Arte”, usado até hoje) mas a louvá-lo como a grande
arte do século XX. Não tenho nenhuma pretensão de me igualar a esses grandes
(seria muita megalomania minha), mas espero ter modestamente contribuído para que
as pessoas considerem Star Trek (e as séries de TV em geral) com mais
seriedade e reflexão. Eu também gostaria de levar as gerações mais jovens a
rever sem preconceitos as produções de cinema e televisão do passado. Ainda que
elas não dispusessem dos recursos tecnológicos (e dos orçamentos milionários)
comuns nos dias de hoje, ainda que refletissem outros padrões estéticos e
dramáticos, outro andamento e ritmo visual, bem como outros valores (que
prevaleciam na sociedade de então, mas são contestados hoje, assim como alguns
valores que hoje se impõem certamente parecerão muito incompreensíveis daqui a
50 ou 100 anos), é preciso entender que elas ainda trazem grande qualidade
artística e cultural, que têm muito a oferecer a quem souber apreciá-las. Foram
elas que desbravaram o caminho para as produções que os mais jovens apreciam
hoje; muito do que se faz hoje é resultado do que esses filmes e séries
inovaram no passado (“o menino é pai do homem”, como dizia Wordsworth; o cinema
e a TV do passado são os pais do que se faz de bom hoje). Tal como a literatura
e as outras artes, o cinema e a televisão têm a sua história, que precisa ser
estudada e conhecida por quem quiser apreciar o cinema e a televisão de hoje –
assim como acontece com a literatura e as artes. Nesse contexto, espero ser um
guia competente a conduzir os meus leitores no desbravamento dos episódios da
série original e clássica de Star Trek.
Compre o livro aqui: https://www.amazon.com.br/Star-Trek-S%C3%A9rie-Cl%C3%A1ssica-Fascinante/dp/6588043384
Nenhum comentário:
Postar um comentário