quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Entrevista com o Prof. Dr. Dárcio Rodrigues, autor de ‘Star Trek: A Série Clássica — A Fascinante Saga Comentada Episódio por Episódio’

 


Com vasta formação acadêmica em Direito Romano, o professor Dárcio Roberto Martins Rodrigues é um exemplo notável de dedicação à academia e à cultura pop. Bacharel, Doutor e Livre Docente pela Universidade de São Paulo, ele também possui experiências internacionais como bolsista da Heinrich-Hertz Stiftung e pesquisador no Instituto de Direito Romano da Universidade de Köln. Como professor associado da Faculdade de Direito da USP, ensina disciplinas como Direito Privado Romano e Latim.

Além de sua carreira jurídica, Dárcio é autor do livro "Star Trek: A Série Clássica – A Fascinante Saga Comentada Episódio por Episódio", no qual analisa com rigor acadêmico os episódios de uma das séries de ficção científica mais influentes de todos os tempos. O livro reflete sua paixão de décadas por Star Trek e sua habilidade em conciliar metodologia científica com análise cultural, destacando os temas históricos e filosóficos abordados pela série.

O que o motivou a escrever um livro comentando episódio por episódio de Star Trek: A Série Clássica?

A pergunta é interessante, porque na realidade eu nunca pretendi escrever livro algum, fui escrevendo-o – por estranho que possa parecer – sem o saber, e, depois de tê-lo escrito, jamais imaginei que um dia seria publicado. Ocorre que eu era apreciador da série clássica de Star Trek  já há décadas, tendo visto e revisto cada episódio incontáveis vezes e estudado tudo o que já foi escrito sobre a série e que me caía nas mãos. Isso me foi enchendo a cabeça de ideias e fazendo-a fervilhar com pensamentos e análises acerca dos vários episódios. De repente (isso deve ter sido por volta de 2007), deu-me vontade de passar esses pensamentos para o papel, apenas para meu uso pessoal, para reunir e consolidar as minhas ideias por escrito. Mas a cada revisão dos episódios, ou a cada leitura de novos textos sobre eles, novas ideias surgiam, e eu ia acrescentando ao material já escrito. Quando o resultado começou a ficar extenso demais, senti a necessidade de organizá-lo com mais rigor, usando para isso o único método que conheço, pela minha formação profissional, que é o método científico-acadêmico: notas de rodapé, citações rigorosas à literatura consultada, bibliografia bem ordenada, estruturação de capítulos (um por episódio), desenvolvimento de ideias etc. E, embora eu julgasse que ninguém jamais leria esse material – a não ser, quem sabe, algum amigo próximo, a quem eu eventualmente oferecesse uma cópia – comecei, quase sem querer, a redigir também com maior rigor, como se de fato se destinasse a um público leitor. Um belo dia (e isso foi no ano de 2016) eu percebi, de repente, que o que eu tinha em mãos era uma monografia completa sobre Star Trek (na época, eu ainda não ousava chamá-la de “livro”). Complementei-a com índices meticulosos e sinopses detalhadas de cada episódio. Fiz uma impressão caseira, mandei encadernar com espiral, e considerei o assunto encerrado para sempre. Ofereci uma cópia ao meu hoje saudoso irmão mais velho (que foi o primeiro a me apresentar a série, quando eu era ainda pré-adolescente, e a chamar-me a atenção para a sua qualidade) e a um ou outro amigo trekker – todos, sem exceção, agradeceram mas a engavetaram sem ler... Até que um dia, em 2022, recebi em casa para o almoço um querido amigo, proprietário e diretor da editora que publica todos os meus livros jurídicos (pois sou professor de Direito). Em meio à conversa descontraída e informal, ele por acaso mencionou de passagem que era fã de Star Trek. Surpreendido ao ouvir isso, mostro a ele casualmente aquela impressão caseira que eu tinha, apenas como curiosidade. Ele examina atentamente, folheia com interesse, lê alguns trechos, e me pergunta: “você já pensou em publicar isso”? Eu respondi: “Não. Quem aceitaria publicar”? “Eu publico!”, disse ele, entusiasmado. No dia seguinte, enviei a ele o arquivo digitado, que foi imediatamente encaminhado para editoração e em seguida para a gráfica. Poucas semanas depois daquele almoço, recebi da editora um pacote contendo, como amostra, alguns exemplares já impressos e prontos para comercialização. Só então eu percebi que tinha, realmente, escrito um livro!

Quais foram os principais desafios ao analisar e comentar uma série tão icônica e influente?

O maior desafio talvez tenha sido fazer justiça a toda a riqueza de conteúdo dessa série tão brilhante. Havia tanta coisa a dizer, tantos aspectos a analisar e comentar, que necessariamente alguma coisa sempre ficava de fora, ou era tratada sem a devida profundidade, por mais que eu fosse acrescentando ideias e citações bibliográficas. Até hoje, reexaminando o que escrevi, acho-o terrivelmente lacunoso e superficial. Depois de publicada a obra, passei por momentos de grande frustração ao relê-la, chegando a arrepender-me de tê-la publicado. Faltou dizer muita coisa. Se eu imaginasse que seria um dia publicada, teria revisto-a por completo, acrescentado muito mais, feito mais pesquisa. Mas, por outro lado, se eu fosse fazer isso, talvez não acabasse o trabalho nunca, ou talvez findasse por desistir do projeto, insatisfeito com o resultado. Ainda me questiono se fiz justiça à série e se consegui transmitir ao leitor ao menos um esboço das ideias mais importantes. Olhando retrospectivamente, foi, sim um grande desafio. Se desde o início eu soubesse o quanto o seria, talvez nem tivesse começado...

Durante o processo de pesquisa para o livro, houve alguma descoberta surpreendente sobre a produção ou os bastidores da série?

Ah, sim, inúmeras – todas elas, ou a maioria, incluídas, ou ao menos aludidas no resultado final publicado. Tirando os detalhes da produção e as muitas curiosidades e incidentes de filmagem (que relato no livro), uma das coisas que mais me impressionaram foi a enorme dedicação dos fãs desde os primórdios, muito antes de a série se tornar um fenômeno e surgirem os fã-clubes organizados. Os fãs pioneiros, já nos primeiros tempos, quando a série ainda estava em produção, operaram verdadeiros milagres – tais como a histórica campanha de cartas (possivelmente totalizando perto de um milhão de cartas) que salvou a série do cancelamento após a segunda temporada. Algumas fãs, como Bjo Trimble e Wanda Kendall, mereceriam medalhas, ou até estátuas erigidas em sua homenagem (quem quiser saber por quê, leia o meu capítulo introdutório à terceira temporada). Mas a magnitude do movimento dos fãs, de um modo geral (sobretudo nos campi universitários, onde, segundo se conta, a vida praticamente parava nas noites em que Star Trek ia ao ar), impressionou-me muito. Eu, que desde muito jovem cresci como um trekker solitário”, não imaginava que a série tivesse atingido de modo igualmente profundo e envolvente um número tão grande de pessoas, motivando-as a coisas tão impressionantes. A descoberta dos fãs-clubes (e das convenções que, ainda que tardiamente, começaram a surgir mesmo no Brasil) foram uma grande revelação para mim.

Em sua opinião, quais são os temas mais importantes que a série abordou e como eles se relacionam com o contexto histórico da época em que foi produzida?

A série foi produzida em meio ao período da chamada “Guerra Fria”, que foi um embate entre o bloco democrático e liberal, capitalista (liderado pelos Estados Unidos e seus aliados na Europa) e as ditaduras comunistas por detrás da chamada “Cortina de Ferro” (controladas pela hoje extinta União Soviética), visando à obtenção de uma hegemonia mundial política e militar. Esse conflito dominava a realidade cultural da época, era algo muito forte; permeava todas as esferas da atividade humana, era sempre o assunto do dia. Não era possível ignorá-lo ou desconsiderá-lo, necessariamente estava apresente em tudo. Mas o problema é que as redes de televisão preferiam deixar o assunto de lado, abafá-lo. Era um tema que despertava paixões ideológicas de ambos os lados do campo político – de modo diferente, mas análogo à “polarização” que vivemos nos dias de hoje. As emissoras de televisão preferiam não entrar nessa briga, não gerar controvérsia, alhear-se ao problema e à sua discussão. Por isso, em geral impunham censura a tentativas de tratar esses temas de modo crítico e inteligente nos filmes e séries, ou de propor reflexão séria sobre eles. Mas inevitavelmente eles se faziam presentes, de diversas formas. Gene Roddenberry muitas vezes declarou que intencionalmente utilizava Star Trek como veículo para burlar essa censura, apresentando a sua realidade contemporânea de maneira alegórica ou camuflada, representada figuradamente nos vários planetas e civilizações visitados pela Enterprise. Quem era inteligente, entendia – mas os censores, que são, por definição, gente pouco inteligente, não percebiam, ou não sabiam como lidar com aquilo, e deixavam passar. Um dos aspectos mais interessantes é observar como a Federação Unida dos Planetas claramente representava o bloco ocidental na Terra do século XX, enquanto os klingons e romulanos personificavam os seus adversários. De fato, essa identificação foi tão forte, que muitos ideólogos de esquerda hoje nutrem um enorme rancor contra Kirk e a Federação, criticando acerbamente sua atuação nos vários episódios. Mas eles se esquecem de que a intenção de Roddenberry e sua equipe não era de meramente tomar partido, louvando um dos lados e fustigando o outro. Sua abordagem foi sempre crítica, mas de crítica construtiva. Certo, eles se punham do lado do seu próprio país (pois a ideia de odiar a própria nação e os próprios valores, de lutar pela sua aniquilação ou “cancelamento”, é uma noção bastante recente, não existia na esquerda americana da época), mas seu posicionamento era crítico; a Federação representa os Estados Unidos e seus aliados tal como Roddenberry achava que eles deveriam ser, e não como realmente eram; ou seja: Kirk e a Federação serviam como “exemplo didático” ou “role model” de como o ocidente deveria atuar, segundo os criadores da série. Mas sem maniqueísmos, nem idealizações: em alguns episódios eles revelavam entender que a dura realidade obrigava também a Federação a às vezes agir de modo questionável, e o espectador era convidado a refletir sobre isso. Tudo isso eu discuto extensamente ao longo do meu livro.

Como você vê a influência de Star Trek: A Série Clássica na cultura pop e na ficção científica em geral?

Acredito que foi muito grande. Embora já tivesse uma tradição rica e relativamente antiga na literatura popular, a ficção-científica ainda se encontrava em uma fase muito incipiente no cinema e na televisão. Predominavam os “monstros” ou eternos invasores extraterrestres (comuns nos filmes dos anos 1950), ou uma ingênua infantilização geral do gênero (que já datava desde o seriado de “Flash Gordon”, no cinema nos anos 1930, até as séries de TV contemporâneas a Star Trek, como “Perdidos no Espaço” (Lost in Space). Mas depois de Star Trek a ficção-científica teve necessariamente de mudar, de amadurecer. Foi revelado ao público que o gênero era coisa séria e potencialmente inteligente, ao contrário do que muitos até então pensavam. Não dava mais para continuar com aquele modelo antigo. Ainda continuaram a existir simples aventuras infanto-juvenis, como a série de “Buck Rogers no Século XXV” na TV dos anos 1970, ou a grandiosa série de filmes de Star Wars nos cinemas, mas o caminho para coisas mais sérias e inteligentes estava irreversivelmente aberto. A ficção-científica nunca mais seria a mesma. Star Trek estava ainda em produção quando apareceram nos cinemas o “2001: Uma Odisséia no Espaço” (de Kubrick) e o “Planeta dos Macacos” (de Franklin J. Schaffner) – e Star Trek certamente contribuiu para preparar o público para a apreciação de obras como essas. Filmes como “Contato” (de Robert Zemeckis, 1997) ou “Interestelar” (de Christopher Nolan, 2014) são, de certa forma indireta, tributários remotos de Star Trek. De um modo geral, é inegável que Star Trek deixou marca indelével na cultura popular. O modo como as pessoas hoje pensam na ficção-científica e nas viagens espaciais foi definitivamente influenciado pela série. Muitos “tropes” (isto é, clichês ou lugares-comuns) das histórias acerca de viagens espaciais foram estabelecidos por Star Trek e hoje são como uma “πρώτη οὐσία” (ou “primeira essência”) do gênero. Também é desnecessário dizer que muitos aparatos tecnológicos dos dias de hoje (dos telefones celulares às telas monitoras de funções vitais nos leitos hospitalares) tiveram, se não a sua tecnologia, ao menos o seu design certamente sugerido ou influenciado por Star Trek.

O que espera que os leitores levem consigo após lerem seu livro sobre Star Trek: A Série Clássica?

Eu espero influenciar os leitores para que passem a respeitar e apreciar com atenção, reflexão, senso crítico e inteligência não somente Star Trek, mas todo o cinema e as séries de televisão. Antigamente havia muito pouco respeito por essas formas de arte e cultura popular. Houve um tempo em que o cinema, de um modo geral, era desprezado e visto como algo inferior, como o “primo pobre” da literatura, do teatro e das artes plásticas. Hoje, felizmente, tal tendência parece ter-se esvanecido, e certamente contribuíram muito para isso os críticos franceses mais intelectualizados dos anos 1950 e 1960, que escreviam para publicações como os Cahiers du Cinéma e a Positif. Mas já em 1911 fora pioneiríssimo o intelectual italiano Riccioto Canudo: numa época em que praticamente todo mundo reputava o ainda nascente cinema como mero divertimento de parque de diversões para mentes menos privilegiadas (o que, levando em conta o primitivo estado de evolução dessa arte naquela época, era até compreensível) ele foi um verdadeiro visionário, porque não apenas foi o primeiro considerar o cinema uma arte de mesma estatura das demais (foi Canudo quem cunhou o termo “Sétima Arte”, usado até hoje) mas a louvá-lo como a grande arte do século XX. Não tenho nenhuma pretensão de me igualar a esses grandes (seria muita megalomania minha), mas espero ter modestamente contribuído para que as pessoas considerem Star Trek (e as séries de TV em geral) com mais seriedade e reflexão. Eu também gostaria de levar as gerações mais jovens a rever sem preconceitos as produções de cinema e televisão do passado. Ainda que elas não dispusessem dos recursos tecnológicos (e dos orçamentos milionários) comuns nos dias de hoje, ainda que refletissem outros padrões estéticos e dramáticos, outro andamento e ritmo visual, bem como outros valores (que prevaleciam na sociedade de então, mas são contestados hoje, assim como alguns valores que hoje se impõem certamente parecerão muito incompreensíveis daqui a 50 ou 100 anos), é preciso entender que elas ainda trazem grande qualidade artística e cultural, que têm muito a oferecer a quem souber apreciá-las. Foram elas que desbravaram o caminho para as produções que os mais jovens apreciam hoje; muito do que se faz hoje é resultado do que esses filmes e séries inovaram no passado (“o menino é pai do homem”, como dizia Wordsworth; o cinema e a TV do passado são os pais do que se faz de bom hoje). Tal como a literatura e as outras artes, o cinema e a televisão têm a sua história, que precisa ser estudada e conhecida por quem quiser apreciar o cinema e a televisão de hoje – assim como acontece com a literatura e as artes. Nesse contexto, espero ser um guia competente a conduzir os meus leitores no desbravamento dos episódios da série original e clássica de Star Trek.

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